Rosto de Cristo, rosto de filho de Maria

O título mais belo, entre os muitos que a fé e o amor atribuíram a Maria de Nazaré ao longo dos séculos, é sem dúvida aquele com que ela é honrada, desde o início, no livro dos Atos dos Apóstolos: a “mãe de Jesus” (Act 1,14). Nela se encerra toda a grandeza e toda a glória da humilde “serva do Senhor” (Lc 1,38).
Ora, como acontece frequentemente, os filhos trazem impressos no seu rosto, em maior ou menor grau, os traços do rosto da mãe. São, podemos dizer usando uma célebre frase bíblica, “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26). Fisiologicamente, mas também espiritualmente. Podemos supor que, fisiologicamente, Jesus se assemelhava muito à sua Mãe; mas, sobretudo, deve ter havido uma grande semelhança espiritual e interior entre ele e ela. Contemplar o seu rosto é, portanto, vislumbrar também o da sua Mãe refletido nele.

Maria modelando o rosto de Jesus

Não se sabe muito sobre a infância de Jesus. Como é sabido, os chamados “evangelhos da infância” (Mt 1,18-25; 2,1-23; Lc 2,1-52) são mais confissões de fé sobre a identidade messiânica de Jesus do que informações históricas sobre os seus primeiros anos.
Por isso, se quisermos saber alguma coisa a esse respeito, devemos recorrer antes aos estudos efetuados sobre a condição da família em Israel naquela época. Deles se depreende que a criança era inicialmente confiada à mãe para os cuidados materiais e a educação mais precoce; posteriormente, o pai assumia a responsabilidade e, um pouco mais tarde, para os filhos do sexo masculino, a escola, onde aprendiam a ler e, eventualmente, a escrever a Tôrah, expressão sagrada da vontade de JHWH. Uma educação que culmina, por volta dos treze anos, com a festa em que são declarados “bar mitzvà” (filho do preceito) e atingem a maioridade. É legítimo supor que Jesus, como qualquer outra criança judia do sexo masculino, tenha passado por este processo de formação.
Podemos, portanto, pensar que foi Maria, a jovem mãe do seu “filho primogénito” (Lc 2,7.23), que moldou o rosto interior de Jesus, ela que primeiro moldou fisiologicamente o seu rosto corporal no seu ventre. No seu colo, ele deve ter mamado, além do leite que alimentava o seu corpo e o fazia crescer “em idade”, o outro leite, o da fé do seu povo, que alimentava o seu coração e o seu espírito, e o fazia crescer “em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52).
Não se pode excluir, portanto, que, quando ele frequentava a escola e assimilava os textos sagrados, Maria também o acompanhasse e o iluminasse com as luzes que lhe vinham da sua profunda experiência de fé.
Ela deve ter sido, portanto, a primeira e decisiva moldadora da fisionomia religiosa do filho, marcando-a profundamente com a sua marca de mulher intensamente crente. O rosto interior do filho deve ter trazido, desde o início, os traços da mãe.

Um traço de importância fundamental

Um contributo das ciências humanas atuais pode ajudar-nos a captar e a evidenciar ainda melhor a semelhança do rosto interior e espiritual de Jesus e da sua Mãe.
De facto, no campo da psicologia, houve quem, analisando as peculiaridades das diversas formas de amor encontradas ao longo da experiência humana, atribuísse ao amor materno o amor à vida (E. Fromm). Típico deste amor, típico da mulher que gera no seu ventre e dá a vida, ao contrário de outras formas de amar, como o amor paterno, fraterno, conjugal ou de amizade, é precisamente o facto de incutir, no coração daquele ou daquela que ela gera, o amor pela vida. Pela própria vida e pela dos outros.
Este é um contributo precioso que nos pode ajudar a iluminar melhor a relação entre Maria e Jesus, e a semelhança do seu rosto interior. Como tivemos ocasião de ver várias vezes em artigos anteriores, Jesus aparece nos evangelhos como um homem apaixonado pela vida concreta das pessoas com quem entra em contacto. Esta paixão impele-o a restituir a saúde corporal ou mental aos doentes, a libertar das suas cadeias os possuídos por espíritos malignos, a libertar o coração dos pecadores do peso das suas dívidas para com Deus; impele-o também a tentar mudar as relações entre pessoas e grupos que geram infelicidade e tristeza, sobretudo nos mais fracos e nos mais pequenos; impele-o também a denunciar as falsas seguranças religiosas ou sociais que acabam por conduzir à morte… É uma paixão que o leva mesmo a arrancar literalmente alguns do reino da morte, para os devolver ao da vida.
Ora, tendo em conta o contributo psicológico que acabámos de referir, podemos supor que este comportamento de Jesus se deve em grande parte ao intenso amor materno com que foi recebido e rodeado por Maria, nos primeiros anos da sua existência. Foi, pois, graças a esta jovem mãe, ao seu amor simples mas intenso, que Aquele em cujo rosto queremos fixar contemplativamente o nosso olhar foi o que foi.

Outros traços do rosto

Para além do traço fundamental e, sem dúvida, ligado a ele, uma série de outros traços caracterizam o rosto da Mãe e aparecem luminosos no do Filho.
É certo que a figura de Maria que os Evangelhos transmitem deve ser entendida à luz do mesmo critério acima enunciado para a de Jesus: as coisas que dizem sobre ela são mais afirmações teológicas do que informações históricas, porque visam mais esclarecer a identidade messiânica do Filho do que instruir-nos sobre a história da Mãe. Mas, mais uma vez, nas entrelinhas, fornecem-nos dados muito significativos. Vale a pena recolher alguns dos mais relevantes.

  • Em primeiro lugar, Maria é apresentada pelos Evangelhos como uma mulher de profunda fé. A saudação com que Isabel a acolhe quando chega a sua casa é muito expressiva a este respeito: “Feliz de ti que acreditaste, porque se vai cumprir tudo o que te foi dito da parte do Senhor” (Lc 1, 45). A sua fé, como a de todos os crentes bíblicos, é fundamentalmente uma confiança radical no Senhor que pronuncia palavras de bênção e de vida. É, portanto, adesão a Deus e adesão também àquilo que Ele diz.
    A esta fé Maria dá um testemunho particular aos pés da cruz, assistindo, segundo o testemunho de João, o seu Filho moribundo (Jo 19,25). Quase como que sublinhando a firmeza desta sua fé, o evangelista diz que ela “estava de pé” junto da cruz. É uma crente que não vacila mesmo perante as dificuldades mais extremas.
    O facto de Jesus ter sido, neste sentido, um homem de fé intensa é atestado por todos os escritos do Novo Testamento. Basta ler os Evangelhos para perceber imediatamente a sua presença na sua vida. Como diz a carta aos Hebreus sobre Moisés, ele viveu sempre “como se visse o invisível” (Heb 11,27). Como se visse Deus e o mundo que as suas palavras revelavam. Ele, como Maria e certamente iniciado por ela, acreditou intensamente “no cumprimento das palavras do Senhor”. A própria carta aos Hebreus diz dele que é o “consumador da fé” (Heb 12,2), ou seja, aquele que a viveu plenamente. Por isso, ele foi, poder-se-ia dizer, o maior crente da história. E, no seu rosto de crente, podem-se ver, sem dúvida, os traços do rosto da Mãe.
    No centro da fé de Maria, uma jovem do povo de Israel, estava indiscutivelmente Deus. Um Deus cuja imagem se foi clarificando, purificando e enriquecendo ao longo dos séculos, através dos vários acontecimentos do próprio povo. É no Cântico do Magnificat, colocado pelo evangelista nos lábios de Maria no seu encontro com Isabel, que o rosto de tal Deus aparece desenhado com particular luminosidade. Ele é certamente o “Senhor omnipotente e santo” (Lc 1,48-49), mas é também o Deus “salvador” (v. 47), que olha para “a humildade da sua serva” para nela realizar “grandes coisas” (v. 48). Não só, mas é o Deus cuja misericórdia “se estende de geração em geração” (v. 50), e ainda o Deus que “Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens
    e aos ricos despediu de mãos vazias” (v. 51-54). Um Deus, portanto, que, subvertendo o modo previsível de ver as coisas entre os homens, coloca as suas predileções nos mais necessitados e fracos, naqueles que, humanamente falando, parecem ser os mais insignificantes.
    Não é difícil ver a afinidade de tal imagem com a que presidiu a toda a vida religiosa de Jesus. Já o sublinhámos em mais do que um dos nossos artigos anteriores. Também neste aspeto, Jesus é filho de sua Mãe. Ele deve ter sugado com o leite materno essa figura de Deus, que depois, em contacto com as Escrituras e no caminho da sua experiência religiosa pessoal, se afirmaria e cresceria até ocupar todo o seu coração e dirigir toda a sua ação. O Deus do Reino que ele anunciava como iminente era, de facto, um Deus que tinha precisamente as conotações enunciadas no Magnificat.
  • Um outro traço do rosto de Maria que emerge dos evangelhos é o da sua interioridade. Do relato do evangelho de Lucas, que faz dela o símbolo da comunidade crente, deduz-se que Maria não viveu à superfície das coisas, atraída pela sua aparência e exterioridade, mas penetrou no seu mais profundo. Ela sabia descer aos acontecimentos da vida, sondando o seu sentido último, o que tinham aos olhos de Deus. Por duas vezes, no seu “evangelho da infância”, Lucas diz que ela guardava “no seu coração” – lugar da interioridade – os acontecimentos que diziam respeito a ela e ao seu Filho (Lc 2,29.51), e numa delas acrescenta que os guardava “meditando-os” (v. 29), isto é, como sugere o termo original, ponderando cuidadosamente o seu significado. Não há, portanto, leviandade nela, mas, pelo contrário, sabedoria e ponderação.
    É esta a impressão que se tem de Jesus ao ler os evangelhos. Ele não vive na leviandade e na exterioridade, e convida constantemente os outros a evitá-las. São inúmeras as passagens evangélicas em que ele é visto a superar a aparência das pessoas, dos acontecimentos e das situações, e a ir diretamente ao mais profundo. Aquilo que o olho da fé, que faz sua a visão do próprio Deus, consegue descobrir. Os próprios adversários parecem tê-lo reconhecido quando, ao introduzir a questão do tributo ao imperador, lhe disseram como premissa: “Mestre, sabemos que és sincero e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, sem te deixares influenciar por ninguém, pois não olhas à condição das pessoas” (Mt 22,16).
    Não parece forçado pensar que Jesus desenvolveu esta capacidade de interioridade no contacto com a sua Mãe. Uma mãe superficial dificilmente gera um filho profundo e capaz de ir além da exterioridade das pessoas e dos acontecimentos.
  • O rosto de Maria é um rosto intensamente marcado pela ternura e pela solicitude. Isto é particularmente evidente na narração das bodas de Caná (Jo 2,1-11), nas quais, para além do Mestre e dos seus discípulos (Jo 2,2), também “a Mãe de Jesus” (v.1) participa ativamente.
    Naturalmente, como em todo o seu evangelho, o autor exprime-se neste episódio de forma altamente simbólica. O texto é de uma riqueza notável do ponto de vista da comunicação da fé. Vários símbolos do Antigo Testamento entrelaçam-se na tentativa de sublinhar o papel decisivo e central desempenhado por Jesus na realização do grande projeto de Deus. Nomeadamente o do matrimónio, que enquadra toda a narrativa. Empobreceria certamente um texto tão denso de sentido se o tomássemos como uma simples crónica do que se passou numa remota aldeia da Galileia durante um banquete de casamento.
    Mas, tal como noutros textos evangélicos, nas entrelinhas podemos discernir neste um dado que, embora não ocupando o primeiro plano, pode contribuir para enriquecer os outros dados. Concretamente, o que se pode colher é a terna solicitude de Maria que, antes de mais, capta com intuição feminina a situação de embaraço criada pela falta de vinho (v. 3), e depois tem o cuidado de quase forçar o Filho a intervir para resolver o problema (vv. 4-5).
    Estamos de novo perante uma estreita semelhança de Jesus com a sua Mãe. Da sua ternura e solicitude perante as necessidades dos outros, sobretudo dos mais pequenos e fracos, estão repletas as páginas dos Evangelhos. Uma delas, que dá um testemunho muito singular deste facto, é a parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 30-35). É, sem dúvida, uma parábola ética, destinada a propor um tipo de comportamento (“Vai e faz tu também o mesmo”: v. 37), mas pode ser vista também como o espelho do coração de Jesus. É ele, como os Padres da Igreja mais do que uma vez assinalaram, o Bom Samaritano que, movido de compaixão, visceralmente comovido pela situação do homem meio morto encontrado à beira da estrada (v. 33), põe em marcha uma série de iniciativas gratuitas destinadas a restituir a vida e a saúde àquele que os homens menos sensíveis do templo tinham afastado. Será exagerado pensar que Jesus aprendeu de forma vital com a vida quotidiana de Maria uma sensibilidade tão fina?
  • Finalmente, merece atenção o facto de a mãe de Jesus ser apresentada, tanto pelos Evangelhos como pela piedade popular, como a “mulher das dores”. Duas passagens evangélicas evidenciam sobretudo este facto.
    Em primeiro lugar, a da apresentação do menino Jesus no templo (Lc 2,21-39). A cena, como sempre sobrecarregada de significados para a fé, tem como um dos protagonistas principais o ancião Simeão, que, tomando o menino nos braços, eleva um hino de bênção a Deus, e depois, voltando-se para a mãe, diz-lhe: “E uma espada trespassará também a tua alma” (v. 35). Uma frase que pode ser lida como uma previsão de todos os sofrimentos que, sem ignorar as grandes alegrias que a sua relação materna com Jesus lhe deve ter proporcionado, teria implicado o facto de estar ao seu lado no seu percurso singular, apesar das obscuridades e incompreensões que isso provocou.
    O cumprimento mais evidente desta “profecia” é visto na outra passagem, a que a representa aos pés da cruz do Filho moribundo (Jo 19,25). É o momento da maior escuridão e, podemos legitimamente supor, da mais intensa dor para a mãe. No entanto, diz o Evangelho, como se quisesse sublinhar a sua integridade perante o absurdo da situação, ela “está de pé”. E permanece em silêncio, “esperando a salvação do Senhor” (Lm 3,26). A resposta a tanta dor ser-lhe-á dada “ao terceiro dia”, quando a luz do rosto do Filho ressuscitado iluminar também o seu rosto.
    Se, nos Evangelhos, encontramos Jesus totalmente dedicado à causa do reino de Deus, disposto a “vender tudo para ter esse tesouro” (Mt 13,44), a enfrentar dificuldades e sofrimentos de toda a espécie e, por fim, até a terrível morte na cruz, podemos pensar que isso se deve em grande parte ao que aprendeu no seio da sua família. No seu rosto resoluto de homem que caminha com determinação para a cruz (Lc 9,51), reflete-se a constância imbatível de Maria e, podemos também acrescentar, a tenacidade do duro trabalho de José.
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A inversão de uma relação

Até agora, os dados evangélicos apontaram-nos para uma acentuada semelhança entre o rosto de Jesus e o de sua Mãe. Mas há outros que, evidenciando uma outra orientação, completam a visão e não podem ser ignorados.

  • Um primeiro dado é aquele fornecido, ainda no contexto dos “evangelhos da infância”, por Lc 2,42-52. Trata-se do episódio da perda e posterior encontro de Jesus adolescente no templo de Jerusalém. Também esse é, antes de mais, uma confissão de fé sobre a identidade messiânica de Jesus, mas sublinha também, de passagem, o seu afastamento dos laços familiares. Mais precisamente, para o que nos interessa, dos laços maternos.
    De facto, à “reparo” que Maria lhe dirige com palavras muito sentidas – “Filho, porque nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura” (Lc 2,48) -, ele responde com a maturidade – antecipada – de um adulto: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?” (Lc 2,49).
    Tais palavras, consideradas na perspetiva de Jesus, podem ser vistas como indicando o momento de afastamento dos laços familiares e maternos que ele praticou decisivamente ao longo de toda a sua vida, como veremos de seguida. Consideradas, pelo contrário, na perspetiva de Maria, podem ser vistas como reveladoras do seu retirar-se para que o filho pudesse ser ele mesmo, isto é, ter a sua identidade original, o seu rosto irrepetível.
    Há uma prescrição no Antigo Testamento que provavelmente soa muito estranha aos nossos ouvidos. Ordena ao povo que saiu da escravidão do Egipto: “Não ferverás um cabrito no leite da sua mãe” (Ex 23,19). É muito interessante, para além do que se pode dizer exegeticamente, a interpretação que alguns rabinos lhe deram: a injunção significa que o filho não deve ser uma espécie de réplica da mãe, mas deve ter a liberdade de ser ele mesmo. O episódio do templo, narrado nesses termos por Lucas, seria uma aplicação dessa prescrição por Maria. Também ela, como qualquer mãe, devia saber retirar-se, até certo ponto desaparecer, para que Jesus pudesse ter o seu próprio espaço, o de se ocupar das “coisas do seu Pai”.
    O que significa, em suma, que o rosto interior de Jesus, mesmo que tenha o rosto de Maria como pano de fundo, é, no entanto, marcado pela sua própria originalidade.
  • Um segundo dado é-nos oferecido pelo Evangelho de Marcos que, ao contrário dos de Mateus e Lucas, apresenta Jesus desde o início como adulto, sem qualquer referência aos seus primeiros anos. A certa altura da narrativa da sua história, introduz a narração da ida do seus de Nazaré para Cafarnaum, onde ele “tinha vindo habitar” (Mt 4,13), com a intenção de o pegar e levar de volta. O evangelista diz abertamente o motivo: “Porque diziam: “Ele está fora de si”” (Mc 3,21). Sem dúvida que o eco do que ele fazia e dizia, tão insólito e contra a corrente, tinha chegado aos ouvidos deles, perturbando-os.
    Do que o Evangelho acrescenta algumas linhas mais adiante, pode deduzir-se que no grupo estava também a sua Mãe (Mc 3,31). Segundo o relato, ao pedido dos seus que o mandaram chamar de fora, através da multidão que estava sentada à sua volta, ele deu uma resposta perentória e cortante: “Quem são minha mãe e meus irmãos? Voltando o olhar para os que estavam sentados à sua volta, disse: “Aí estão minha mãe e meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,33-35).
    Aparentemente, estas palavras parecem exprimir uma rejeição da sua família e da sua própria mãe; na realidade, são antes um testemunho da sua liberdade soberana em relação a qualquer outro laço que não seja o laço muito estreito que ele demonstra constantemente ter com o seu “sonho”: a vinda iminente do reino de Deus (Mc 1,14-15). Um vínculo que passa por cima de todos os outros e que subordina a si todos os outros, mesmo os habitualmente mais próximos, como os criados pela comunhão da carne e do sangue.
    Não seria correto ver na afirmação de Jesus uma “rejeição” da sua Mãe, o que contradiria a sua maturidade humana, tão evidente nos evangelhos. Ele, como se pode vislumbrar no relato da paixão de João, deve ter mantido sempre uma relação serena e madura de intenso amor filial com Maria. Até ao ponto de cuidar dela até à morte na cruz (Jo 19,27).
    Pelo contrário, a sua afirmação deve ser entendida como uma confirmação, alargada porque envolve também “os irmãos”, do que estava contido nas palavras proferidas quando ele foi encontrado no templo: ele tem direito ao seu espaço próprio e peculiar, e os outros, incluindo a sua mãe, devem saber respeitar e também favorecer esse espaço.
    Podemos supor que Maria, por um lado, fomentava essa liberdade, pois tinha incutido no seu coração um amor apaixonado pela vida, e, por outro, que aprendeu a fazê-lo concretamente, não sem algum esforço, a julgar por textos como este.
    Mais tarde, no livro dos Atos dos Apóstolos, encontramo-la como parte do grupo dos seus discípulos após a morte e ressurreição do seu Filho (Act 1,14). O que significa que ela, que o tinha tido como discípulo nos primeiros anos e que tinha modelado o seu rosto interior, reproduzindo nele os seus próprios traços, se tornou depois sua discípula, assimilando os traços do rosto d’Ele. “Filha do teu Filho”, cantara Dante noutros tempos; “discípula do teu Discípulo”, poder-se-ia cantar também hoje.
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(NPG 2005-03-54)

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