Rosto de Cristo, rosto de bom pastor

Façamos objeto da nossa contemplação jubilosa um traço do rosto de Jesus Cristo que toca muito de perto aqueles que, de uma forma ou de outra, estão envolvidos na ação de salvação desenvolvida pela Igreja: o seu rosto é de Pastor.

Deus Pastor no Antigo Testamento

Nos escritos do Antigo Testamento, a metáfora do pastor usada para falar de Deus responde a uma experiência vivida por Israel desde o início da sua história. Os seus antepassados, como sabemos, eram pastores semi-nómadas que percorriam o chamado “crescente fértil”, deslocando-se frequentemente com os seus rebanhos de uma região para outra. Sabiam bem o que significava cuidar das suas ovelhas, conduzi-las ao pasto e à água para saciar a sua sede, defendê-las do perigo. A sua vida errante tinha como uma das suas principais razões a necessidade de encontrar refeições abundantes para as alimentar.
Compreende-se, assim, a naturalidade com que os judeus usavam a imagem do pastor para se referirem ao seu Deus e, em particular, para indicar a relação mútua que viviam com Ele. Isto pode ser visto numa infinidade de textos de todos os tipos: históricos, proféticos, sapienciais. Escolhamos apenas três muito significativos, entre muitos. Dois são salmódicos, um terceiro é profético.
O Salmo 79, o grande invitatório com que se abre a oração litúrgica, exprime de forma muito densa a profunda convicção do povo da Bíblia sobre a função desempenhada por JHWH para com ele. A certa altura, o salmista exclama: “Nós, que somos o teu povo e ovelhas do teu rebanho, glorificar-te-emos para sempre; de geração em geração cantaremos os teus louvores”. A certeza de ser conduzido com amor, e até com ternura, como povo, pelo seu Deus, transparece em muitos outros textos semelhantes (por exemplo, Sal 79,13; 80,2; 100,3; etc.). Israel sabe-o bem porque o experimentou: foi Ele que o arrancou da escravidão do Egipto e o conduziu pela mão no meio das dificuldades, defendendo-o de todos os perigos. O profeta Amós descreve esta intervenção divina com uma acentuada ternura: “Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egipto o meu filho […]. Ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços […]. Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer” (Os 11,1-4). É um pastor com traços até maternais. Por tudo isto, Israel sente a necessidade de proclamar o seu louvor “de geração em geração”.
No Salmo 23, conhecido precisamente como “o salmo do pastor”, a perspetiva não é coletiva, como no anterior, mas pessoal. Nela, o piedoso israelita exprime a sua total confiança n’Aquele que vela constantemente por ele, que o defende, que o guia, que o alimenta. A sua oração atinge alturas poéticas notáveis: “O SENHOR é meu pastor: nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas refrescantes. Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome. Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo. A tua vara e o teu cajado dão-me confiança. Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos; ungiste com óleo a minha cabeça; a minha taça transbordou”. Em poucas linhas, ele traça um quadro maravilhoso do Deus Pastor que acompanha a sua existência neste mundo.
Entre os muitos escritos proféticos, merece ser mencionado um de particular incisividade. É aquele que pertence ao “livro da consolação” do profeta Isaías, no qual a metáfora se refere a uma experiência não raro vivida pelos pastores de Israel: “Olhai, o Senhor DEUS vem com a força do seu braço dominador; olhai, vem com o preço da sua vitória, e com a recompensa antecipada. É como um pastor que apascenta o rebanho, reúne-o com o cajado na mão, leva os cordeiros ao colo, e faz repousar as ovelhas que têm crias” (Is 40,10-11). A cena a que o texto alude é muito mais viva do que as palavras da sua tradução sugerem à primeira vista. Descreve um pastor cheio de solicitude e ternura que, ao conduzir o seu rebanho, se vê obrigado a parar porque uma ovelha dá à luz um cordeiro. Com delicadeza, pega no recém-nascido e coloca-o ao peito, obrigando todo o rebanho a andar mais devagar para que a mãe ovelha possa recuperar dos trabalhos do parto. A imagem, cheia de suavidade e até de doçura, exprime bem o que o Profeta quer dizer sobre a atitude de JHWH para com o seu povo.

Leia também  Rosto de Cristo, rosto de um homem soberanamente livre

Jesus pastor

Os Evangelhos atestam que a metáfora do pastor foi também utilizada pelo próprio Jesus.
Encontramos, em primeiro lugar, a parábola que contou para justificar o seu modo de agir com os pecadores (Lc 15,1), do pastor que vai à procura da ovelha perdida e, tendo-a encontrado, põe-na ao ombro com alegria, vai para casa, chama os amigos e vizinhos e diz: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida” (Lc 15,2-6). Um pastor que, na segunda parábola da série, encontra o seu equivalente metafórico na mulher que procura incansavelmente a sua moeda perdida e se alegra com as suas amigas e vizinhas quando a encontra (Lc 15,8-10) e, na terceira, no pai zeloso que espera incansavelmente o seu filho extraviado e organiza uma grande festa quando ele regressa (Lc 15,12-24). Sem dúvida, Deus é retratado nas três parábolas, esse Deus bom e solícito que Jesus torna presente pela sua maneira de tratar os pecadores e os excluídos.
No Evangelho segundo São João, encontramos depois o longo discurso do bom pastor, pronunciado por Jesus após a cura do cego de nascença e os desenvolvimentos posteriores (Jo 10,1-18). A figura do verdadeiro pastor, ou seja, aquele que vive coerentemente a sua identidade, é esboçada em nítido contraste com o mercenário, aquele “a quem não pertencem as ovelhas” e que “não lhe importam as ovelhas”. Pelo contrário, o verdadeiro pastor cuida das suas ovelhas, “chama-as uma a uma”, “vai à frente delas, e as ovelhas seguem-no, porque reconhecem a sua voz”. Mas, acima de tudo, ao contrário do mercenário, “dá a sua vida pelas ovelhas”. No momento mais alto do discurso, Jesus declara solenemente: “Eu sou o bom pastor” (Jo 10,14); e com não menos solenidade afirma: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10), pondo assim em evidência o sentido último da sua presença no mundo.
A metáfora do pastor é retomada noutras ocasiões por alguns escritos do Novo Testamento para falar dele (Heb 13,20; 1Pd 2,25; 5,4; Ap 7,17), confirmando assim a longa tradição da fé judaico-cristã.

Os traços de Jesus pastor

Revendo os Evangelhos, não é difícil identificar os principais traços que constituem a identidade do pastor que é Jesus.
Antes de mais, ele mostra ter um coração de pastor, repleto de uma única preocupação: “que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). De facto, é esta preocupação que, como já foi sublinhado mais de uma vez, ocupa o mais íntimo do seu ser, a ponto de se tornar o seu “tesouro”. É o fogo que arde no seu peito e que o leva a falar e a agir de uma determinada maneira. Se, como ele próprio disse, “o homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o que é bom” (Lc 6,45), foi sem dúvida do seu coração que ele tirou a sua dedicação sem limites a Deus e aos homens, e entre eles, particularmente aos mais fracos e necessitados.
O seu coração, pode dizer-se com fundamento, foi inteiramente modelado pelo do Deus Pastor, já esboçado no Antigo Testamento, e que ele revelou em toda a sua plenitude no decurso da sua vida. Não era, portanto, um coração duro e insensível, fechado em si mesmo, nem um coração guiado pela “simetria” de uma justiça que ama quem o ama e abomina quem não o ama, mas, pelo contrário, um coração terno e extremamente sensível, totalmente aberto aos outros e marcado por aquela “assimetria” típica do amor gratuito de alteridade. Um símbolo extremamente eloquente disso mesmo é o coração trespassado e, por conseguinte, aberto e, de certo modo, esvaziado – “um dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água” (Jo 19,34) – que Ele tinha na cruz. A solenidade com que o evangelista o enuncia – “Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também” (Jo 19,35) – parece confirmar a importância do símbolo.
O seu olhar, as suas reações e, sobretudo, as suas ações de pastor brotam então do seu coração de pastor. Há, sem dúvida, muitos tipos de olhares humanos. Há olhares de curiosidade, de malícia, de cobiça, de benevolência, de compreensão, de simpatia… Cada um deles capta, nas pessoas e nas coisas, aspetos que os outros não conseguem apreender. Os Evangelhos mencionam mais de uma vez o olhar de Jesus (Mt 19,26; Mc 3,34; 10,23; Lc 19,5; Jo 1,42; etc.). É um olhar muito caraterístico. Precisamente o olhar de um pastor. Consideremos apenas, a título de exemplo, dois textos evangélicos que o evidenciam bem.
O primeiro é o que menciona o olhar com que olha para as multidões: “Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor” (Mt 9,36). Sabemos quem constituía essas multidões: eram os pobres e os simples que O seguiam, esperando que Deus, através da sua ação, desse uma solução para os muitos problemas que tornavam a vida deles difícil e até infeliz (Mt 8,1; 8,18; 9,8.19; 12,23; 13,12; etc.). Jesus olha para eles e “tem compaixão deles”. Não é cego nem indiferente à sua situação. Se fosse um aristocrata ou um estoico, tê-los-ia olhado ou com um sentimento de superioridade e até de desprezo, ou com uma indiferença desinteressada; em vez disso, comove-se visceralmente com a sua situação. Vê-os, precisamente, “como ovelhas sem pastor”, à mercê de lobos que ameaçam a sua vida e, por isso, necessitados de acolhimento, compreensão e ajuda. E a esta visão corresponde a sua reação proactiva.
O segundo texto é aquele que revela um pormenor da prova que conduziu à sua condenação e morte: “Então o Senhor voltou-se e olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se das palavras que o Senhor lhe tinha dito: “«Hoje, antes de o galo cantar, irás negar-me três vezes.» E, vindo para fora, chorou amargamente.” (Lc 22,61-62). É possível vislumbrar a intensidade daquele olhar, vindo de quem vai para a morte, dirigido a um dos seus amigos mais próximos que acaba de o trair: não é certamente um olhar de condenação, mas de amor compreensivo e acolhedor. Os efeitos são imediatamente visíveis: Pedro, tocado intimamente, derrete-se em lágrimas de arrependimento.
Para além de olhar com olhos de pastor, Jesus reage também pastoralmente às pessoas e às situações em que elas se encontram. É emblemático, deste ponto de vista, o seu comportamento no encontro com a viúva de Naim: “Quando estavam perto da porta da cidade, viram que levavam um defunto a sepultar, filho único de sua mãe, que era viúva; e, a acompanhá-la, vinha muita gente da cidade. Vendo-a, o Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: «Não chores»” (Lc 7,12-13). Esta sua atitude é expressa pelo evangelista com o mesmo termo – “sentiu-se tocado nas entranhas” – com que reagiu à visão das multidões. Também aqui o olhar é seguido de um envolvimento íntimo e intenso que o faz vibrar com a mesma dor da pessoa que sofre. E, quase como um suspiro, sai-lhe do peito o apelo: “Não chores!”.
Mas o seu olhar e ação pastorais não são apenas emocionais, antes se traduzem em ações concretas e eficazes. No caso das multidões, responde às suas necessidades distribuindo-lhes primeiro o pão da sua palavra e depois multiplicando-lhes o pão material (Mc 5,34-43); no caso da viúva de Naim, acompanha o convite dirigido à mãe para não chorar com a restituição do filho chamado à vida (Lc 7,14-15). Na mesma linha, poderíamos ver tantas outras das suas intervenções destinadas a restituir a saúde aos doentes e aos possuídos por espíritos malignos, o perdão aos pecadores, a amizade aos excluídos, a dignidade aos desprezados…
Mas, sobretudo, a sua morte é verdadeiramente a morte de um pastor que, desejoso da vida e da felicidade das suas ovelhas, não hesita em “dar a sua vida” por elas (Jo 10,11.15.17).

Leia também  Rosto de Cristo, rosto de orante

(NPG 2004-09-36)

Artigos Relacionados