Rosto de Cristo, rosto de um apaixonado pelo Reino de Deus

Iniciamos, com este tema, a exploração contemplativa do rosto de Jesus Cristo, com a intenção de o redescobrir na sua frescura original. Fixaremos o nosso olhar num dos traços mais típicos do seu rosto, amplamente atestado nos evangelhos.

Uma advertência preliminar

Podemos comparar a nossa exploração à procura de um rosto querido num álbum de fotografias de família. O nosso olhar detém-se nas diferentes fotografias que se sucedem, descobrindo nelas as mil facetas do rosto procurado.

Em que álbum procurar o rosto de Jesus Cristo? A resposta é perentória e não pode deixar margem para dúvidas para aqueles que se dizem cristãos: nos evangelhos. Com efeito, eles são o testemunho da primeira fé, a fé daqueles que viveram ao seu lado, que o viram agir, reagir, rezar, curar os doentes, ressuscitar os mortos… morrer ignominiosamente na cruz, e depois “comeram e beberam com Ele após a sua ressurreição” (Act 10,41).

No entanto, ao interpretá-las, como recomenda o Vaticano II na constituição Dei Verbum (n.12), há que ter em conta o seu carácter literário. Não são, de facto, uma biografia de Jesus, no sentido moderno da palavra, mas antes uma confissão de fé nele, feita à maneira de uma narrativa. Além disso, foram escritas depois da Páscoa e, por isso, testemunham a fé que brotou nos corações e nas mentes dos seus primeiros discípulos com a Páscoa.

Daí que tenham sido escritos com grande liberdade em relação às palavras e aos actos de Jesus, dos quais destacam mais o seu significado para a fé do que a sua materialidade objetiva.

Os Evangelhos são para nós o fulcro da fé, e tudo o resto deve ser confrontado com eles e de alguma forma filtrado através deles. Mas é precisamente por isso que devem ser lidos corretamente. Entre outras coisas, não devem ser lidos de uma forma “fundamentalista”, ou seja, fixando-se na sua letra, nem de uma forma “dogmatista”, ou seja, filtrando-os através dos dogmas e doutrinas que a fé da Igreja desenvolveu em tempos posteriores. Em vez disso, devem ser lidos utilizando, na medida do possível, os expedientes fornecidos por aqueles que, como estudiosos sérios e conscienciosos, desenvolveram ferramentas para interpretar estes textos.

É assim que pode emergir deles a figura fresca, original e fascinante d’Aquele para cujo rosto queremos olhar fixamente.

Primeiro dado da “fotografia” original do rosto de Jesus

Numa leitura suficientemente atenta dos evangelhos, Jesus aparece imediatamente como um homem intensamente unificado em torno de um ponto aglutinador. Tudo nele – energias corporais, psíquicas, intelectuais, volitivas… – aparece como concentrado em torno de algo que atrai para si tudo o que ele tem e tudo o que ele é. O Jesus dos Evangelhos não aparece, portanto, como um homem-borboleta, que se move constantemente de uma flor para outra, mas como um homem-rocha, solidamente ancorado num ponto de enraizamento.

Além disso, depreendemos dos Evangelhos que esse algo, esse ponto unificador em torno do qual se centra toda a sua pessoa é um grande sonho, um projeto de grande alcance, aquilo a que se poderia chamar uma causa. Um ponto de união que se tornou o seu tesouro.

Uma das parábolas que ele contou, a do homem que, ao lavrar um campo, encontra um tesouro e vende tudo o que tem para se apoderar do tesouro descoberto (Mt 13,33), descreve muito bem a sua condição pessoal: de facto, esse sonho deve ter arrebatado o seu coração em algum momento da sua vida, porque, como ele próprio disse, “onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6,21). Com uma outra metáfora usada vários séculos antes pelo profeta Jeremias (Jr 20,7), poder-se-ia dizer que ele foi seduzido por aquele grande sonho, que ficou como que fascinado por ele. Uma sedução e um fascínio que tiveram o efeito de unificar profundamente todo o seu ser.

Omitir este primeiro dado, que salta imediatamente aos olhos quando se lêem os evangelhos, seria distorcer desde logo o seu rosto.

Um segundo dado

Os Evangelhos fornecem-nos um segundo dado distintivo da figura de Jesus: ele vive com verdadeira paixão a sua dedicação ao sonho que traz no coração. Não se trata de uma existência vivida na indiferença ou na indolência, mas sim de uma existência vivida com intensidade e com um ímpeto irreprimível e imparável. É claro que também há momentos de abrandamento, em que a intensidade do seu entusiasmo sofre uma quebra. Basta pensar no momento que antecede a sua morte, ou seja, a noite passada no Jardim das Oliveiras, na qual, segundo o testemunho do Evangelho segundo São Marcos, começou a sentir pavor e a angustiar-se (Mc 14,33). Mas, no conjunto, o testemunho dos evangelhos permite-nos apreender a sua vida cheia de ímpeto e de dinamismo.

Uma frase do Evangelho segundo São Lucas exprime bem o que estamos a sublinhar: “Eu vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado!” (Lc 12,49). A imagem do fogo é muito expressiva, e fala do ardor com que ele persegue a causa que abraçou. E as palavras “como eu gostaria que já estivesse acesa” traduzem o desejo irreprimível da sua realização. É este fogo que é o motor de toda a sua atividade incansável, como o atestam os relatos evangélicos. É deste fogo que brotam o seu modo de agir, as suas ações e os seus discursos.

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Para além disso, há que acrescentar que é para a realização do grande desígnio que o apaixona que ele enfrenta até a morte sem desistir.

Um terceiro dado decisivo

Qual é o centro unificador da existência pessoal e da atividade de Jesus? A resposta a esta pergunta é o terceiro e importantíssimo dado que os evangelhos nos fornecem.

Atualmente, há uma grande convergência no reconhecimento de que esse centro é constituído por aquilo a que, com uma expressão típica do seu tempo, ele próprio chama o reino de Deus. Tanto os biblistas como os teólogos apoiam este facto, e o Papa João Paulo II fez eco desta convergência na sua Encíclica Redemptoris Missio.

Jesus tem isso “estampado” no seu rosto: é “o homem do Reino de Deus”, vive polarizado em torno dele, totalmente conquistado pelo projeto divino que ele representa. É precisamente por isso que é tão importante compreender como é que ele o entendeu.

Do facto de ser judeu, podemos deduzir com fundamento que a sua atenção ao Reino de Deus ou, talvez em palavras mais claras, à vinda do próprio Deus para reinar em Israel e no mundo inteiro, era em parte uma herança da longa experiência de fé e de esperança do seu povo. Deve ter identificado a proclamação deste facto sobretudo nos escritos dos profetas que ele, como qualquer rapaz judeu, aprendeu a ler em criança. Excertos como o de Is 2,2-4, em que o profeta sonha com uma situação em que todos os povos “transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra”, ou a de Is 11,1-9, em que Isaías imagina poeticamente um mundo novo em que ” o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito;
o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição”, devem ter atraído vigorosamente a sua atenção. Não é rebuscado pensar que passagens como essas, ou outras semelhantes, alimentaram particularmente sua mente e seu coração.

Por outro lado, e precisamente como efeito de tais anúncios proféticos, existia no seu tempo, em Israel, uma viva expetativa dessa vinda, nos vários grupos então existentes: fariseus, zelotes, essénios, saduceus, todos se inclinavam para essa vinda, cada um, naturalmente, à sua maneira. Até João Batista deu origem a um movimento de conversão sob o signo da vinda iminente do Reino de Deus (Mt 3,2). Mas talvez aqueles que mais ansiavam por essa vinda de Deus fossem as pessoas simples, lutando com as muitas dificuldades da vida.

Esta pobre gente, que sofria e gemia sob o peso da pobreza e da marginalização, ansiava por uma intervenção do alto que mudasse a sua sorte. Uma longa tradição levava-os a acreditar que Deus, através de um dos seus enviados, descendente de David, haveria de governar “com cetro de ferro e destruir como um vaso de barro” (Sl 2,9) os seus inimigos, estabelecendo assim definitivamente o seu reino de paz e justiça.

Mas a forma como Jesus entendia o reino de Deus não coincidia totalmente com nenhuma das expectativas mencionadas. Era singular, peculiar e desconcertante. Em parte, tinha algo do que os outros pensavam, mas em parte distanciava-se de todos eles.

Uma maneira de compreender o seu modo de pensar é rever o que ele fez nos Evangelhos. Alguns chamaram-lhe “a sua praxis do Reino”. É precisamente porque ele é semita, cuja cultura não tem tendência para se exprimir de forma estritamente concetual, como a do Ocidente, mas sim de forma operacional. Ele diz o que pensa mais fazendo do que definindo estritamente o que lhe vai na alma.

Ora, a ação de Jesus desenvolve-se em duas dimensões complementares: a que tem os indivíduos como destinatários ou beneficiários, e a que visa as relações sociais. Ambas são importantes para compreender o que ele pensa do reino de Deus que o apaixona.

As curas corporais, os exorcismos e o perdão concedido a pecadores individuais são as intervenções mais frequentemente registadas nos relatos evangélicos. Ele não só as realiza, mas também ordena aos seus discípulos que as façam (Mt 9,35-36; 10,1.7-8).

Muitas vezes, estes acontecimentos, certamente extraordinários ao ponto de suscitarem o espanto das multidões (Mt 9,33; 15,31; Mc 5,42; etc.), foram interpretados teologicamente como milagres destinados a certificar a sua condição divina ou a sua missão messiânica; para Jesus, porém, pelo que podemos depreender, são antes sinais da irrupção do Reino de Deus. Indicam a sua presença e a sua direção. Revelam o seu significado. Por outras palavras, mostram que a instauração da soberania benevolente de Deus implica a restauração do ser humano na sua integridade em todas as dimensões, a começar pela corporal.

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A este respeito, é significativo o relato evangélico da “crise” de João Batista. Estando ele agora na prisão, envia os seus discípulos para lhe perguntarem: “«És Tu aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?»  Como quem diz: é mesmo verdade que o reino de Deus que também eu anunciei está a chegar através de ti? Jesus respondeu-lhes: «Ide contar a João o que vedes e ouvis: Os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres…” (Mt 11,3-5). São estes os sinais concretos através dos quais se torna visível a vinda do Reino. E todos eles são, como podemos ver, sinais que dizem respeito aos homens na sua totalidade.

A “praxis do Reino” de Jesus, porém, tem também uma dimensão social. Diz respeito à convivência interpessoal e coletiva. Um aspeto que talvez nem sempre tenha sido suficientemente tomado em consideração pela fé vivida, dada a menor sensibilidade em relação a isso. Hoje, em geral, estamos muito mais atentos a essa dimensão. Permite-nos compreender que, para Ele, as relações entre as pessoas e os grupos têm um peso considerável na sua existência.

É particularmente esclarecedor, para compreender a sua maneira de entender o reino de Deus, ver como reage aos diferentes conflitos que atravessavam a sociedade do seu povo. Entre muitos, destacam-se três: os conflitos entre os chamados justos e os pecadores, entre os ricos poderosos e os pobres, entre homens e mulheres. Trata-se de conflitos em que um grupo forte e favorecido marginaliza e até explora outro grupo fraco e desfavorecido. Fonte, portanto, de mal-estar agudo para estes últimos, e de injustiça, pelo menos objetivamente, para os outros. Trata-se de situações relacionais que se cristalizam e ganham consistência em estruturas de natureza diversa: económicas, sociais, políticas e até religiosas.

A maneira de Jesus reagir a eles é basicamente a mesma: denuncia-os, desmascarando-os, e propõe a sua superação, tendo em conta sobretudo aqueles ou aquelas que sofrem as consequências mais pesadas: os pecadores, os pobres, as mulheres. É de notar que a sua denúncia e a sua proposta não se exprimem principalmente através de discursos, que ele faz, mas através da sua maneira de se comportar: coloca-se sempre do lado dos vencidos.

Um exemplo notável é a forma como actua em relação ao primeiro dos conflitos, aquele entre justos e pecadores. A introdução de Lucas às três parábolas da ovelha perdida, da dracma perdida e do chamado filho pródigo atestam-no com toda a clareza: “Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da Lei murmuravam entre si, dizendo: «Este acolhe os pecadores e come com eles.» Jesus propôs-lhes, então, esta parábola” (na verdade, as três mencionadas) (Lc 15,1-3). O motivo das murmurações dos justos (fariseus e escribas) era o facto de receber (em sua casa, provavelmente) pecadores e, pior ainda, de se sentar à mesa com eles. Significava comungar com aqueles que, segundo a mentalidade deles, o próprio Deus tinha excluído do seu reino.

Estes seus gestos “sociais” são também sinais do reino de Deus. Também eles revelam o seu significado. Fazem saber que a instauração da soberania de Deus implica uma inversão dos tipos de relações assimétricas em que uns estão bem, excluindo e até explorando os outros. Não é esse o tipo de convivência que Deus pensou ao criar o homem, porque gera dor, mal-estar e frustração. Numa palavra, a morte.

Em síntese

Querendo fazer uma síntese da análise que fizemos, podemos dizer o seguinte: o reino de Deus que Jesus anuncia com tanta paixão consiste na vitória de Deus sobre todas as formas de mal existentes no mundo, sobre tudo o que mantém os homens e as mulheres numa situação desumana. A começar pelos males do corpo, passando por todos os outros males que os atingem pessoal e socialmente, até ao mal do pecado como rutura da relação com Deus.

Poder-se-ia dizer ainda de outro modo: é o mundo “refeito” segundo o projeto original de Deus, aquele projeto revelado nas primeiras páginas da Bíblia (Gn 1-2), em que tudo é harmonia, alegria, bem-estar e felicidade total; portanto, o mundo reconduzido à sua total conformidade com a vontade primordial de Deus, uma vontade indefetivelmente marcada por uma bondade ilimitada para com o mundo.

O Evangelho segundo São João apresenta uma tradução talvez mais próxima da nossa sensibilidade atual. Fá-lo relatando o discurso em que Jesus se compara ao bom pastor. Referindo-se à sua missão no mundo, diz: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Esta paixão pela vida, e pela vida em abundância para todos e para cada um, é sem dúvida o traço decisivo que caracteriza o rosto d’Aquele em quem fixamos o nosso olhar.

(NPG 2004-02-56)

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