Rosto de Cristo, marcado pela dor

Cristo pendurado na cruz preside a uma grande parte da nossa vida pessoal, comunitária, litúrgica e até civil. Converteu-se até numa “moda” ou num “talismã” que se pendura ao pescoço ou à orelha… É, portanto, o rosto de Cristo que os cristãos de hoje mais provavelmente veem. Como tal, e ao contrário de outros, somos convidados a fixar um olhar de fé também no seu rosto profundamente marcado pelo sofrimento e pela morte.

Questões suscitadas pela morte de Jesus na cruz

Não são poucos os devotos de outras religiões e credos que têm dificuldade em compreender como se pode conciliar a filiação divina de Jesus, professada pelos cristãos, com o fim desastroso que marcou a sua existência terrena. Consideram-no muitas vezes um absurdo incompreensível.
A questão não é nova. Já Paulo escrevia no seu tempo que “Cristo crucificado era escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1 Cor 1,23). Mas também no seio da própria Igreja primitiva isso era sentido com grande intensidade. Os primeiros cristãos, sobretudo os provenientes do judaísmo, tinham dificuldade em aceitar “a linguagem da cruz” (1 Cor 1,18).
De facto, não eram poucos os que, em Israel, esperavam um messias glorioso e poderoso, que instauraria à força a soberania de Deus sobre o povo e o mundo inteiro, derrotando todos os seus inimigos. Numerosos textos do Antigo Testamento alimentavam tais expectativas, embora houvesse outros, como o quarto cântico do Servo de Javé (Is 52-53), ou o misterioso oráculo do profeta Zacarias (Zc 13,6-7), ou ainda certos salmos (Sl 2,2; 109,2-4; 118,22; etc.), que apontavam na direção oposta.
Ora, embora já antes da ressurreição os discípulos pareçam ter vislumbrado a identidade messiânica de Jesus (Mt 16,16; Mc 8,29; Lc 9,20; etc.), só a partir dela, e graças a ela, é que começaram a anunciá-lo abertamente como messias (Act 2,36; 3,17; etc.). Esta afirmação colocou uma séria questão àqueles que tinham alimentado a sua esperança num messias poderoso e glorioso: como era possível que Jesus fosse o messias esperado, se tinha morrido na maior fraqueza e impotência, na ignomínia mais humilhante da cruz? Tiveram, portanto, de se esforçar para encontrar o sentido. E fizeram-no recorrendo sobretudo ao Antigo Testamento. Vestígios das suas tentativas podem ser encontrados, segundo os estudiosos, nos vários escritos do Novo Testamento.
Em algumas delas, afirma-se que Jesus morreu na cruz porque, afinal, todo o profeta, segundo uma crença muito difundida em Israel, pagou o seu testemunho com a vida (Lc 6,22; 11,49-59), e Ele, o Profeta por excelência dos últimos tempos (Mt 21,11; Jo 6,14; 7,14), não podia ser exceção. Noutros, porque o Justo por excelência (Act 3,14; 7,52; 22,14), personificado por Jesus, teve de suportar, e de forma ainda mais intensa, os sofrimentos e as perseguições que tiveram de suportar todos os justos que antes quiseram permanecer fiéis a Deus. Noutras, ainda, apela-se ao misterioso desígnio de Deus que implica uma conclusão semelhante para a sua história: “era necessário” é a fórmula utilizada por esta resposta para exprimir este modo de ver as coisas (Lc 17,25; 24,7.26; Act 1,16; 2,23). Finalmente, uma quarta e última interpretação relaciona a morte de Jesus com a figura do Servo Sofredor de Is 52-53, vendo nela o Jesus-servo que se entregou em sacrifício pelo perdão dos pecados do seu povo e de toda a humanidade (Mc 15,28; Act 8,32).
O valor destas interpretações é relativo, no sentido em que nenhuma delas pode reivindicar a exclusividade, uma vez que também existem as outras, que também pertencem ao depósito da fé. Isto explica o facto de, com o passar do tempo, terem surgido outras na comunidade crente.
Entre elas, algumas conseguiram enraizar-se profundamente na fé do povo cristão, e ainda hoje estão presentes. Sobretudo as que estão mais diretamente ligadas às duas que acabámos de mencionar.
Em primeiro lugar, a que interpreta a paixão e a morte de Jesus através do modelo do sacrifício expiatório, e pensa que ele morreu na cruz para expiar o pecado da humanidade, apaziguando assim a ira de Deus provocada pela ofensa do homem; depois, a que usa o modelo da redenção e do resgate, e pensa que Jesus foi, segundo a expressão de Is 53,10, “esmagado pelos nossos pecados”, e assim libertou o homem da condenação que pesava sobre ele por causa do seu pecado; Finalmente, uma terceira, difundida sobretudo nos meios protestantes, que utiliza o modelo da satisfação substitutiva ou vicária, e pensa, recorrendo a uma outra expressão do mesmo cântico de Isaías, que “pelos seus sofrimentos fomos salvos” (Is 53,5), isto é, que Ele sofreu em lugar da humanidade o castigo que esta merecia pelos seus pecados, e tomou sobre os seus ombros o peso do pecado de toda a humanidade. Ele é, portanto, o cordeiro que carrega sobre si o pecado do mundo.
Hoje, tudo isto está a ser revisto. Muitos cristãos já não se revêem nesta maneira de interpretar as coisas, e a teologia começou a revê-la.

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As causas históricas da morte de Jesus na cruz

Entre outras coisas, uma nova abordagem da figura de Jesus Cristo, identificada como uma “cristologia a partir de baixo”, porque prefere partir não do Verbo eterno feito carne, como fazia a teologia de outros tempos, mas do homem Jesus de Nazaré, chamou a atenção para a importância de não “saltar” as causas históricas da morte de Jesus para compreender o seu significado. Argumenta que as fórmulas “pela nossa salvação”, “pelos nossos pecados” e outras semelhantes, utilizadas para responder à pergunta sobre as causas da sua paixão e morte, válidas em si mesmas, correm o risco de esquecer os factos históricos de Jesus e a importância que têm para a compreensão da sua identidade.
É importante, ou mesmo indispensável, afirma-se, voltar a considerar o comportamento de Jesus no seu empenhamento pelo Reino como um quadro de referência que dá sentido à sua paixão e morte.
Com base nos abundantes dados fornecidos pelos Evangelhos, é preciso dizer que Jesus morreu na cruz – foi, portanto, executado! – porque o que ele proclamava como mensagem divina chocava com as posições daqueles que não a queriam aceitar.
Como vimos em artigos anteriores, a sua forma de conceber o reino de Deus era diferente da de todos os outros grupos religiosos de Israel. Propôs uma subversão radical de tudo o que impedia a possibilidade de uma vida verdadeira e plena para todos, a começar pelos mais desfavorecidos, o que implicava necessariamente um novo modelo da convivência a todos os níveis. É por isso que ele denunciou e combateu tenaz e corajosamente as atitudes, as relações e as estruturas que se opunham a isso.
Combateu, antes de mais, um certo modo legalista de se relacionar com Deus que fazia do homem um escravo e não um filho. Deu sinais claros de que não podia suportar que a sua relação com o Deus que invocava como “Abbá” pudesse ser vivida no medo e na legalidade. E, sobretudo, que tal religiosidade fosse imposta aos outros, reduzindo-os a escravos que vivem no medo, cansados e oprimidos pelo jugo da lei (cf. Mt 11, 28-30). Esta é uma das causas históricas da sua morte violenta. Aqueles que se sentiam incomodados e até assustados com a sua maneira de conceber a relação com Deus e com a sua crítica a todo o sistema religioso nela baseado, decidiram neutralizar a sua ação, eliminando-o do povo. Entenderam que ou o deixavam avançar com a sua proposta, e então teriam de mudar radicalmente muitas coisas no modo de viver religiosamente, ou o bloqueavam para que isso não acontecesse. E optaram por esta segunda alternativa.
Jesus também pôs em causa o sistema de pureza legal do seu tempo, um sistema que dividia o mundo em dois: pessoas, animais e coisas puras e pessoas, animais e coisas impuras. Uma divisão de fundo religioso, mas que tinha depois repercussões sociais muito importantes. Ele não só não se submeteu a ela, como a transgrediu conscientemente quando estava em jogo o bem, a felicidade e a vida de alguém (Mc 1,40-41; 5,25-34.41; etc.). E isto não podia deixar de incorrer na ira de quem prezava esta lei com extremo zelo. Também deste ponto de vista, se a conduta de Jesus se propagasse, muitas coisas teriam de ser mudadas na convivência de Israel. E não só na convivência interna, mas também na dos judeus com os que não o eram. Porque o esquema da pureza legal também se aplicava globalmente à relação entre o povo judeu e o resto dos homens e mulheres. Os “pagãos”, de facto, eram considerados globalmente e com desprezo como seres impuros a evitar (Act 10,28).
Depois, havia os conflitos globais que atravessavam toda a convivência social, já referidos anteriormente. Os que existem entre justos e pecadores, entre ricos e poderosos e pobres, entre homens e mulheres. Jesus contestou, com palavras e sobretudo com a sua conduta e os seus atos, todas as formas de marginalização por eles criadas.
As suas opções face a estes conflitos indicavam claramente, para quem as olhasse com um mínimo de inteligência, que ele propunha uma sociedade organizada de forma exatamente oposta à que estava então organizada. Não se tratava, portanto, de fracos e pequenos excluídos e marginalizados, aliás esmagados pelos fortes e poderosos, mas, pelo contrário, de destinatários de uma atenção preferencial. Ora, isto implicava necessariamente uma perda de estatuto privilegiado por parte dos vencedores destes conflitos. Estes, se quisessem seguir as propostas de Jesus, deviam fazer como Zaqueu (Lc 19,1-11): renunciar às suas vantagens injustas e converter-se a uma verdadeira e real fraternidade. Mas, pelo que se depreende dos evangelhos, poucos estavam dispostos a isso. Pelo contrário, endureceram-se na defesa dos seus interesses e decidiram eliminar aquele que subvertia as coisas. De facto, acusaram-no de subversão perante o tribunal, exigindo a sua morte (Lc 23,2).
Uma última situação contraditória denunciada por Jesus foi a que envolvia o Templo. Aquele lugar sagrado no monte Sião tinha sido durante séculos o coração pulsante da vida do povo, porque era considerado a morada do Deus que tinha tirado Israel da escravidão do Egipto e o tinha levado a possuir a terra da promessa. No tempo de Jesus, era gerida pelas famílias dos sumos sacerdotes, que a tinham transformado num instrumento de enriquecimento. Assim, a casa de Deus tinha-se transformado num “covil de salteadores” (Mc 11,17). Compreende-se a reação indignada de Jesus perante uma tal situação. Todos os quatro evangelistas, embora cada um à sua maneira, relatam o episódio da sua intervenção (Mt 21,12-16; Mc 11,15-18; Lc 19,45-46; Jo 2,13-16). João diz que ele “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo” (Jo 2,15). O seu zelo pela casa de seu Pai levou-o a tal ação (Jo 2,17). Mas a sua intervenção atraiu a ira dos chefes religiosos do povo, que decidiram matá-lo (Mc 11,18). Era um homem perigoso. Com as suas críticas ao sistema religioso estabelecido no Templo, ele podia provocar uma reviravolta na situação. Tanto mais que a multidão o admirava. A sua eliminação era, pois, necessária. E assim foi decretado.
Estas são as principais razões históricas que levaram Jesus ao patíbulo da cruz. De facto, segundo o que dizem os Evangelhos, a primeira acusação que lhe foi dirigida durante o julgamento perante o Sinédrio foi a de ter falado contra o Templo (Mt 26,60-61; Mc 14,58); a segunda, pelo contrário, perante o tribunal romano, foi a já referida de “subverter o povo” (Lc 23,2). Trata-se, como se vê, de motivos estreitamente ligados à sua atividade em prol do Reino de Deus, por um lado, e às reações de certos grupos contra ele, por outro.
A cruz de Jesus não é, portanto, uma expressão da fatalidade divina que alguns cristãos pensam erradamente. Nem é algo que não tenha uma ligação estreita com tudo o que ele fez anteriormente. Pelo contrário, é o culminar de uma existência vivida para o reino de Deus. É, portanto, a mais alta manifestação do seu amor pela plenitude da vida humana, e também a mais alta expressão do seu amor pelo Pai.

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A obediência de Jesus até à cruz

É também neste enquadramento que deve ser entendida a obediência de Jesus, mencionada em vários textos do Novo Testamento (Jo 4,34; 8,29; Fl 2,6-8; Heb 5,8…).
Uma forma bastante difundida entre os cristãos entende a obediência de Jesus a Deus como o facto de ele fazer (executar, cumprir) a vontade daquele que o enviou. Nisto segue, sem dúvida, os textos recordados. Só que os interpreta de acordo com uma certa linha apocalíptica, segundo a qual Deus tem um plano no céu, decidido desde a eternidade até aos mais ínfimos pormenores sobre as pessoas e a história, e cabe aos seus fiéis descobrir qual é a sua vontade, momento a momento, para a realizar na terra. Ou, pior ainda, interpreta-os da forma típica dos islamistas que, quando confrontados com o que aconteceu, reagem dizendo: “Estava escrito”.
Os Evangelhos, lidos em profundidade, levam a uma outra compreensão da obediência de Jesus. Consistia em viver uma adesão total à vontade de Deus, mas não como executor passivo de algo decidido por Ele de forma inelutável, mas como corresponsável pelo seu grande Plano em favor do mundo.
Jesus descobriu a única grande vontade do seu Pai, a de tornar cada um dos seus filhos vivos, plenamente vivos, e abraçou-a com uma paixão irreprimível, tornando-a total e criativamente sua, e procurando de todas as formas realizá-la. Mesmo com o risco da própria vida: “Fez-se obediente até à morte, e morte de cruz”, diz o hino de Fl 2,4-8. A este grande sonho do Pai, que também se tornou totalmente seu, sacrificou até a sua própria vida.
O rosto de Jesus na cruz é, por isso, o rosto de quem sofreu fecundamente pela vida do mundo. É já na realidade, portanto, o rosto cheio de luz que se manifestará na sua ressurreição.

(NPG 2005-02-54)

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