A boneca de sal: a história do nosso mar

Texto de opinião de Rogério Almeida, sdb, para o Boletim Salesiano n.º 571 de Novembro/Dezembro de 2018.

Era uma vez, uma boneca… Mas não era uma boneca como as outras. Por um “erro” da natureza, era feita de sal.

Nasceu num lugar ignorado, perdido, escondido. Não gostava. Sentia-se mal. Sufocava. E partiu. Foi conhecer mundo…

Mas não gostou mesmo nada do que viu: outras bonecas maltratadas, esfarrapadas, violadas; tiroteios, bombas, atentados suicidas, crianças ensanguentadas; ruínas, mortes, destruição, e guerras em nome de Deus e da religião.

(Deus?! Onde é que estava Deus?)

Triste, cansada, desanimada, foi parar ao mar. Nunca tinha visto o mar e perguntou: – Quem és tu? – Eu sou o mar. – Mas o que é o mar? – Sou eu! – Não entendo. Como gostaria de te conhecer! – Toca-me.

Então a boneca de sal, timidamente, tocou o mar com as pontas dos dedos do pé. Muito admirada, exclamou:
– Oh! Desaparaceram as pontas dos meus pés. Que fizeste, ó mar? – Tu deste alguma coisa de ti mesma para me poderes compreender.

E a boneca de sal começou a entrar lentamente no mar, solene e vagarosa, como quem vai fazer o ato mais importante da sua vida. À medida que ia entrando, ia-se diluindo e ia compreendendo cada vez melhor o que era o mar. Até que uma onda tragou totalmente a boneca de sal. No último instante da sua existência, ainda teve tempo de exclamar: eu sou o mar…

O mar é a vida,
e a vida é dar, é amar…

E a boneca de sal, diluída, liquefeita, começou a peregrinar na solidão daquele deserto de água. A sua vida era um vazio, uma ausência. À sua volta o silêncio sufocava toda a esperança.

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E rezava: “Salva-me, ó Deus, porque as águas quase me submergem; estou a afundar-me num lamaçal profundo, não tenho ponto de apoio; entrei no abismo sem fundo e a corrente está a arrastar-me” (Sl 69).

E perguntava: Mas porquê, meu Deus? Porquê este mar? Porquê este sofrimento e este silêncio, que Tu me pedes para aceitar?

O mar é a vida,
e a vida é lutar, é peregrinar…

A fé é a “permanência paciente na noite do mistério” 1. E, enquanto durar a “noite”, rezar será como quebrar o silêncio com um grito sem eco, mas com a certeza de ter sido ouvido…

Porque Deus é um mistério, não é um teorema. É na paciência com Deus que se manifesta a nossa fé, para continuarmos a lutar, neste mar…

“O nosso lugar não está nos sucessos e nos resultados triunfais, mas em alto mar, no mar aberto, em que antes ou depois, durante a navegação da vida, surgirão águas agitadas e ventos contrários” 2.

O importante não são as regras da navegação, mas “a paixão pelo alto mar” 3.

“O homem encontra-se com as mãos vazias, e seu coração está cheio de desilusão e ceticismo – quem não conhece tais momentos? E ressoa, então, a palavra da fé: esforça-te, tenta mais uma vez” 4.

A fé é fazer-se ao mar, e tentar mais uma vez. A fé é acolher o mistério e o silêncio de Deus. E deixar de falar…

“Silencia, débil razão: escuta Deus” (Pascal).

Silencia, débil razão, ajoelha, põe as mãos, inclina a cabeça. É a hora da adoração…

O mar é a vida,
e a vida é acreditar
sem ver, sem sentir, sem tocar.
A vida é ADORAR…

O mar é a vida, e a vida é amar, peregrinar, acreditar e adorar, na “noite” do mistério…  

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1 Tomáš Halík, Paciência com Deus, Ed. Paulinas, Prior Velho, 2013, p. 160.
2 Ermes Ronchi, As inquietantes perguntas do Evangelho, Ed. Paulus, Lisboa, 2017, pp. 27-28.
3 Ibidem, p. 28.
4 Tomáš Halík e Anselm Grün, O abandono de Deus. Quando a crença e a descrença se abraçam, Ed. Paulinas, Prior Velho, 2017, p. 112.

Publicado no Boletim Salesiano n.º 571 de Novembro/Dezembro de 2018

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