Renascer: Quaresma, caminho para a Páscoa

De um momento para o outro, fiquei com a sensação de que o mundo deu um trambolhão monumental. A cabeça ficou atordoada de tal maneira que ainda não me dei conta do que está a acontecer. Como disse D. Manuel Clemente, procurando classificar a situação em que nos encontramos, “a noite invadiu, de chofre, o dia”. 

Na quarta-feira de cinzas preparávamo-nos, certamente, para encetar uma caminhada séria para a Páscoa, através do itinerário quaresmal já conhecido, possivelmente rotineiro, de jejuns, abstinências, um pouco mais de oração e, porventura, da esmola possível. Acrescentavam-se algumas leituras espirituais, uns pozinhos de mais boa vontade em amar o próximo, o suficiente para tranquilizar a nossa consciência de cristãos conscientes, assim nos classificávamos nós. Com o nosso programa delineado, a Páscoa seria a Festa de sempre. No coração da Primavera, seria o reencontro com uma natureza renovada e uma vida, a nossa, que se esmerou por renovar-se também. A Vida viria do Senhor Ressuscitado para nós de uma forma que já conhecíamos. Um bocadinho de esforço no caminho da Quaresma e a Páscoa iria trazer-nos essa enorme alegria, que iríamos partilhar com amigos e parentes vindos de longe, que já se tinham disponibilizado a visitar-nos.

De repente… tudo se transformou. Qualquer coisa medonha, escura como as trevas da noite, abalou a nossa terra, trazendo sementes de morte no seu seio, cercou-nos, confinou-nos, apavorou-nos com um pavor de que ainda não nos libertámos. Vemos ainda que a morte quer ocupar o lugar da vida e tem sido impiedosa para tantos e tantos dos nossos irmãos. Os primeiros impactos foram de desespero pela impotência em vencer esse monstro. Aos poucos, alguns foram encontrando a capacidade para analisar o que se estava a passar. E era grave, muito grave! Vozes desencontradas gritam : “onde está Deus?” ou “Deus é o nosso amparo, a nossa salvação!” O tantas vezes ignorado, esquecido, dispensado Deus, é agora chamado pelo desespero de uns e pela fé de muitos… E Ele, que sempre esteve e está presente na vida dos seus filhos, mostra-se nas generosidades até ao extremo de tantos deles, na coragem de arriscar batalhas contra o sofrimento e contra a morte destes dias, no serviço abnegado de ajuda aos mais necessitados, no consolo aos mais débeis e desencorajados, consolo que deriva dum substancial aumento de fé dos que dela se tinham esquecido, no despertar de cada um para riquezas humanas, forças e coragens há tanto tempo enclausuradas, preguiçosamente, dentro de si. Deus está connosco nesta Quaresma Nova que nos convida a viver; quer ensinar-nos, então, a deixar rotinas passadas, dando a este tempo de preparação para a Páscoa profundidade de vida capaz de nos levar à alegria de uma verdadeira Páscoa em Jesus, “o Grão de trigo que morre para dar Vida e Vida em abundância… para todos”.

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AMANHÃ, depois desta negra noite passar, será nova esta nossa terra e a Luz de Deus brilhará para muitos mais dos seus filhos que acreditam na Vida, que nasceu fulgurante da Páscoa de Jesus.

Publicado no Boletim Salesiano n.º 580 de Maio/Junho de 2020

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