Lema do Reitor-Mor dos Salesianos 2021

Texto final do Lema do Reitor-Mor 2021

Movidos pela esperança: «Eis que faço novas todas as coisas» (Ap 21,5)

Premissa

Em toda a parte do mundo, em qualquer nação ou religião que seja, a “imagem do ano” que ficará impressa na mente de todos será a de um homem idoso, vestido de branco, sozinho na grande esplanada da Praça de São Pedro em Roma, na tarde chuvosa, ao pôr do sol, de 27 de março de 2020. O homem era o Papa Francisco, que nunca esteve tão só durante uma oração, mas, ao mesmo tempo, nunca tão acompanhado por toda a humanidade. Com aquele gesto, ele recordou a todo este nosso mundo, constituído por raças, culturas, nações e religiões diversas, que Deus tem a capacidade de dirigir para o bem também as realidades mais desastrosas e dolorosas. E convidou-nos a olhar com compaixão para a nossa pobre fé.

O que vivemos nos últimos meses é, sem dúvida, um desafio que nos interpela e que não podemos ignorar, como se nada tivesse acontecido ou como se tudo já fosse passado.

1. UMA REALIDADE MUNDIAL QUE NOS INTERPELA E QUE NÃO PODEMOS IGNORAR

Não poderia escrever uma só página de comentário ao Lema 2021 ignorando o que atingiu toda a humanidade em todos os países ao mesmo tempo. Vivemos tempos muito difíceis; vivemos o que jamais haveríamos de imaginar ou suspeitar. Fazemo-nos muitas perguntas que ainda não encontram resposta e ouvimos anunciar as datas do fim próximo da pandemia, embora faltem confirmações neste sentido. Isto aconteceu devido à Covid-19: uma doença infeciosa causada por um vírus até agora desconhecido.

A excecionalidade deste momento está a afetar-nos profundamente. Tanto é que nem sequer as crises sociais, políticas e económicas das últimas décadas semearam tanto medo no mundo como esta pandemia. Medo, dor e insegurança, perda e desespero encheram o coração de ricos e pobres, de gente famosa e pessoas desconhecidas, de grandes e pequenos. Trata-se, sem dúvida, da maior crise global dos últimos setenta anos. E as decisões que deverão ser tomadas pelos governos influenciarão o mundo por muito tempo: não só a economia, mas também a política, a cultura e a mesma visão do ser humano.

Durante estes meses, temos assistido a tantos gestos de generosa doação e sacrifício. Entre eles, parece-me justo recordar o heroico empenhamento dos agentes de saúde que trabalharam até o esgotamento, as pessoas que garantiram os serviços essenciais necessários à convivência civil, as pessoas que cuidaram da ordem social e alguns políticos, não todos, que assumiram com honestidade e clarividência as próprias responsabilidades, deixando de lado as rivalidades partidárias.

Entretanto, também houve situações vergonhosas, marcadas pelo egoísmo, nas quais não se quis compartilhar materiais sanitários ou equipamentos médicos, não entendendo que a crise económica global exige e cada vez mais exigirá uma resposta global.

Em todo caso, os dados falam por si. Ao terminar este ano de 2020, 80 milhões de pessoas terão sido infetadas e 1.800.000 morreram. Além disso, a Covid-19 mostrou o seu lado pior, ou seja, o isolamento, a morte em total solidão, o “coração despedaçado” de tantos familiares.

Não resta dúvida de que tudo isto fez vacilar muitas das nossas alegadas certezas. Em todos os países procurou-se transmitir aos cidadãos uma sensação de segurança. A linguagem utilizada era como se se tratasse de uma guerra: «Todos contra o vírus! Vamos vencê-lo!», dizia-se. «Certamente, mais cedo ou mais tarde, será superado». Fiquei muito impressionado quando, há meses, bastantes  cidades do mundo se encorajaram a si mesmas e aos seus cidadãos com slogans que procuravam afastar o medo. Eram mensagens como estas:

  • Em Bristol, o ursinho Paddington acompanha, numa casa, uma mensagem em que se lê: «A arte da sobrevivência. Permaneçam em segurança».
  •  Em Tóquio, o edifício “Tokyo Skytree” mostra esta mensagem: «Juntos podemos vencer».
  • Na Cidade do México, o Hotel Barceló mostrou, no seu edifício, um cartaz que diz: «O México unido resistirá e sairá mais forte».
  • Na cidade belga de Antuérpia, leu-se esta mensagem numa casa: «Isto também vai passar. Um momento melhor chegará. E será glorioso».
  • Em Ontário, Canadá, muitos hotéis próximos das Cataratas do Niágara usam as luzes dos quartos para criar corações e mensagens de esperança.
  • E em Vancouver, uma mensagem pintada na parede de uma loja fechada no centro da cidade diz: «Nós amamos-te, Vancouver. Fica em segurança. Aguenta firme. Volta depressa. Mantenham o distanciamento e estejam conectados. Vamos conseguir. Também vamos superar isto».

Observo tudo isto certamente com respeito. Não poderia ser de outra forma. Contudo, parece-me pouco, muito pouco, insuficiente para entender, explicar e até mesmo envolver o coração e a vida. Sinto que precisamos de algo muito mais profundo e vital que nos permita fazer sedimentar no coração e serenar no íntimo o que estamos a viver hoje; mas também sem esquecer que existem muitas outras pandemias que continuam a crescer no nosso mundo atingindo duramente, embora não a todos, e que não fazem tanto rumor porque estão distantes. Como crentes e como Família Salesiana de Dom Bosco, não podemos ignorá-las ou esquecê-las. Refiro-me aos 32 focos de guerra ativos neste momento, ao mesmo tempo que a Covid-19; falo do comércio de armas que não foi afetado nem diminuiu, mas aumentou. Penso que outras terríveis situações endémicas não são menos graves do que a atual pandemia, mesmo que não afetem a economia das nações e, portanto, não contem. Isto foi  oportunamente posto em evidência pelo Papa Francisco com palavras dirigidas aos jovens, mas que também se referem aos adultos e, por vezes, a famílias inteiras. O Papa afirma que muitos jovens «vivem em contextos de guerra e padecem a violência numa variedade incontável de formas: raptos, extorsões, criminalidade organizada, tráfico de seres humanos, escravidão e exploração sexual, estupros de guerra, etc. (…). Numerosos são os jovens que, por constrangimento ou falta de alternativas, vivem perpetrando crimes e violências: crianças-soldado, gangues armados e criminosos, tráfico de droga, terrorismo, etc.».[1]

E então pergunto-me: que significará esta “nova normalidade” de que tanto se fala? Que ficará em cada um de nós depois deste ano? Haverá uma corrida louca para recuperar o “tempo perdido”, a economia perdida? Será apenas um terrível pesadelo ou, ao contrário, deixará algo de positivo em muitas pessoas, na organização das sociedades? A “nova normalidade” trará realmente alguma coisa nova, mudará algumas realidades para melhor?

Não sei o que nos espera, mas sinto que há um caminho que poderíamos percorrer como Família Salesiana e que nos faria muito bem, oferecendo ao mesmo tempo o nosso humilde contributo e a nossa humilde ajuda aos outros.

2. QUE QUEREMOS DIZER QUANDO FALAMOS DE ESPERANÇA?

«Vê, eu descobri-o nestes meses: a esperança é como o sangue: não pode ser vista, mas precisa de existir. O sangue é a vida. A esperança é assim: ela é algo que circula por dentro, que precisa de circular, que te faz sentir vivo. Se não a tens, estás morto, estás acabado, não há nada a dizer… Quando não tens esperança, é como se já não tivesses… Talvez estejas inteiro, mas estás morto. Exatamente isso».[2]

Nos últimos meses, pensei várias vezes que a leitura que fazemos deste momento que temos de viver não pode ser como as outras. Não somos movidos pelos interesses das cadeias de hotéis ou das companhias aéreas. Sem negar que aquilo que eticamente cria trabalho e sustento é bom em si mesmo, não temos em mira o turismo que deve ser ativado, nem a produtividade que deve crescer (dizem-nos, o dobro do passado, para compensar o tempo perdido e superar o revés que estamos a viver).

Por mais que tudo isto seja justo, ainda falta alguma coisa na nossa visão, na nossa interpretação e no que nos motiva e move à ação. E, por isso, é claro para mim que não podemos enfrentar “o depois” e não podemos colocar-nos diante da “nova normalidade” sem viver de esperança. Nenhum futuro é absoluto e definitivo, se depender apenas do ser humano, que é projeção e tende sempre para algo mais. Parece que aquilo que se obtém está sempre a meio caminho de alguma coisa nova. Aspiramos sempre a algo mais e estamos sempre na expetativa. É este o motivo da escolha do tema do Lema deste ano.

Então, o que é a esperança? De que falamos quando dizemos esperança? De que tipo de esperança se trata?

É uma realidade que me fascina. Houve muitos, muitíssimos autores que refletiram sobre a esperança a partir das mais variadas perspetivas.[3] Podemos falar de esperança enquanto atitude meramente humana. Podemos falar de expetativas, de aguardar e esperar. Não quero entrar em diferenciações complexas – como se devêssemos dar atenção ao que S. Tomás de Aquino entende por esperança, quando distingue entre esperança enquanto paixão, esperança e força (ou magnanimidade), e esperança enquanto virtude teológica: não é este o lugar, nem o momento para isso. O que pretendo dizer é que o ser humano é chamado a esperar. Queira ou não, ele sempre tem de escolher, com maior ou menor consciência, entre abrir-se a um horizonte de plenitude ou fechar-se dentro dos limites das “esperanças”, daquelas que se podem sentir e tocar. Esta abertura natural do ser humano à esperança não é igual à esperança cristã, embora faça parte da mesma identidade da pessoa, homem ou mulher.

Assim como se diz em filosofia, apropriando-se do princípio cartesiano: «Penso, logo existo», também se poderia dizer: «Vivo, logo espero». Porque sem esperança a vida não seria vida, não teria sentido em si mesma, pois a existência humana não resiste ao viver no desespero, isto é, “sem esperança”.

Todavia, a esperança não é um simples desejo, porque o desejo tende sempre para algo de concreto e determinado. A esperança também não se reduz ao mero otimismo que tem o seu objetivo nos cálculos e na previsão de um resultado positivo. A esperança refere-se plenamente à pessoa e tem a ver com dedicação e confiança. De facto, o ser humano é projeção e tendência para “algo mais”, para o que está além do previsível, para algo de realmente novo.

A realidade que descrevi anteriormente fala de um mundo que tem em si muitas notas de desumanidade. Penso que isto é inegável e evidente para todos. Não gostaríamos que fosse assim, mas de facto ainda o é. Apesar disso, mesmo neste mundo com tantas notas de desumanidade, pode-se viver com uma atitude diferente. Há quem viva no lamento e na negatividade, com o coração endurecido. Felizmente, há também muitos que procuram viver movidos por um dinamismo que leva a buscar a vida, a tentar fazer o melhor, a concentrar-se em viver de amor e de serviço, a trabalhar sob o dinamismo da esperança. E quando vivemos movidos pela esperança, experimentamos que o amor, o serviço e um coração cheio de humanidade têm, em todo caso, pleno significado num mundo que ainda conhece muita, demasiada, desumanização. Desde o nosso ponto de vista, a esperança é, de facto, para o ser humano, um ingrediente do amor. É o que nos diz São Paulo quando afirma no precioso hino aos Coríntios que «o amor tudo espera» (1Cor13,7).

3. QUE LEITURA CRENTE PODEMOS FAZER?

A pandemia acabará certamente dentro de alguns meses. Outras “pandemias” que trazem consigo o flagelo da desumanização não desaparecerão com uma vacina. É certamente justo estudar a pandemia, o coronavírus, e encontrar uma vacina. Antes ou depois, isso acontecerá. Já está a chegar e estamos muito contentes.

Muitas perguntas lancinantes derramaram-se nestes meses em muitos corações. A questão do significado ou não de tudo isso esteve presente. É legítimo. É muito humano. A dura realidade de infortúnio e sofrimento vivida hoje pelo mundo parece levar as pessoas mais ao escândalo e ao protesto do que à fé; à dúvida, mais do que ao abandono confiante. Contudo, diante deste grito humano ou junto com ele há sempre (para nós crentes) Deus.

A fé cristã mostra continuamente como Deus, mediante o seu Espírito, acompanha a história da humanidade, mesmo nas condições mais adversas e desfavoráveis. O Deus que não sofre, mas que tem compaixão, segundo a bela expressão de São Bernardo de Claraval: «Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis» (Deus é também impassível, mas não sem compaixão).[4] Lemos na história da salvação que Deus jamais abandona o seu povo, mas permanece sempre unido a ele, de modo especial quando o sofrimento se torna muito forte. Deus não se foi embora, não se afastou, mas sofre naqueles e com aqueles que sofrem por este flagelo, e continua a salvar como também salvou através de muitos que arriscam a vida pelos outros, de muitos que servem e se dedicam aos outros com grande profissionalismo.

Em todo este tempo, pode parecer a muitos que a discrição de Deus, que intervém somente com o apelo silencioso do seu amor,[5] se revele insuportável. Entretanto, trata-se da autêntica realidade de Deus que se mostra solidário em acompanhar-nos, tornando-se próximo, bem distante da imagem do Deus de poder que intervém para alterar as coisas “de modo mágico”. Mais, falamos do Deus que «faz novas todas as coisas» (cf. Ap 21,5), porque esse é o seu projeto. Graças à obra de redenção do Filho, o ser humano emerge para a vida com as demais criaturas, deixando para trás os gemidos e sofrimentos de que, anteriormente, a criação estava cheia, e renova-se por meio da sua intervenção recriadora. É como se Deus mesmo convidasse a olhar para o que Ele está a realizar na história e que no final dos tempos levará ao pleno cumprimento. Nós, como comunidades cristãs, somos chamados a discernir o nosso presente e ler a ação de Deus que mantém a promessa feita na Aliança, de acompanhar o seu povo (e cada um) com a sua poderosa presença diante do mal e, ao mesmo tempo, com ternura por aqueles que confiam n’Ele.

Diante desta realidade, nós crentes sentimo-nos iluminados pela fé que se torna esperança. Segundo as palavras do Papa Bento XVI: «A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho».[6]

A esperança cristã é histórica e tem a sua base na profunda confiança em Deus, o Deus de Jesus Cristo, que jamais abandona o seu povo e está sempre com ele.

É uma esperança que vai além de tudo que possa satisfazer as expetativas humanas relacionadas com o “aqui e agora”, este momento presente, sustentado apenas pelos recursos pessoais ou pelos meios humanos e materiais à nossa disposição. A esperança de que estamos a falar fundamenta-se na promessa de Deus, que é o seu melhor fiador.

A esperança que nos move torna fecundas todas as pequenas esperanças do ser humano, mostrando os grandes valores nos quais a humanidade investiu as suas melhores energias: a verdade, a bondade, a justiça, a solidariedade, a paz, o amor, etc. Estas energias não se convertem em utopias, mas tornam-se realizações concretas e parciais do grande projeto desde sempre preparado por Deus para toda a humanidade e que se torna definitivo em Cristo. Esta é a esperança que nos move.

«A verdadeira e grande esperança do homem, que resiste apesar de todas as desilusões, só pode ser Deus – o Deus que nos amou, e continua a amar-nos “até ao fim”, “até à plena consumação” (cf. Jo 13,1 e 19,30). Quem é atingido pelo amor começa a intuir em que consistiria propriamente a “vida”. Começa a intuir o significado da palavra de esperança».[7]

Uma esperança confiável faz-nos viver na certeza de que o futuro está plenamente garantido. A esperança diz respeito, então, ao ter Deus connosco. A esperança muda totalmente o presente, não só porque quando o futuro é conhecido como realidade positiva, o presente se torna mais suportável, como também porque o conhecimento do futuro, através da fé, muda o nosso modo de viver. Viver com Deus não é a mesma coisa que viver sem Deus. Ele é um Deus que abre caminho mesmo nos desertos da vida, desafiando a desilusão e o ceticismo, o medo e a desilusão. Por isso, a esperança que nos move leva-nos a pedir a Deus o dom da fé. Pedir para ter confiança n’Ele, que realiza tudo em todos, e ter confiança nos outros.

O tempo da prova é um tempo de decisão[8]

A resposta crente à esperança suscitada por Deus baseia-se no Evangelho como poder de Deus para a constante transformação e renovação da vida.

O Papa Francisco, com a sua linguagem direta, convida a ser «gente mais de primavera do que de outono».[9] O cristão vê os “botões” de um mundo novo, mais do que as “folhas amarelas”. Não nos refugiamos na nostalgia e no lamento, porque sabemos que Deus nos quer herdeiros de uma promessa e cultivadores incansáveis de sonhos. Com uma fé clara no Deus que “advém” e intervém. Com os braços da esperança cristã – os braços da cruz de Cristo – abraçamos o mundo inteiro e não damos nada e ninguém por perdido ou falido.

Algumas perguntas, entretanto, continuam legítimas: quem queremos ser perante a realidade que somos chamados a viver? Como queremos viver depois disto tudo? Porque perderíamos uma grande oportunidade se não fizéssemos tesouro do que estamos a viver, incluída a dor.

Existem, é certo, muitas pessoas que, numa perspetiva civil, como cidadãos, com uma consciência clara de humanismo e sem nenhum horizonte de fé, se veem a enfrentar esta realidade e esta crise. É muito legítimo. 

Entre elas estamos também nós. E o mundo de hoje precisa do nosso testemunho de vida; precisa de nós que descobrimos o sentido da nossa vida no encontro com Cristo e no Deus de Jesus Cristo. São Paulo recorda aos Efésios que antes do encontro com Cristo eles viviam «neste mundo, sem esperança e sem Deus» (Ef 2,12). Ele sabia, é verdade, que tiveram outros deuses, mas que não brotava nenhuma esperança dos seus mitos. Apesar de terem deuses, viviam sem Deus.[10] Todavia, conhecer Deus através do seu Filho significava para eles, e também para o homem e a mulher de hoje, receber uma esperança. É por isso a fé se torna esperança, «a fé é esperança».[11]

A visão de fé no encontro com Jesus Cristo é o que torna diferente o modo de ver a vida, o modo de sentir no coração. Portanto, o modo de tomar decisões e discernir o que tem ou não tem valor, é marcado pelo encontro da pessoa com a Pessoa. Por isso, um teólogo que refletiu muito sobre a esperança, como J. Moltmann, diz que «quando a fé se transforma em esperança, não torna as pessoas tranquilas, mas inquietas, não as torna pacientes, mas impacientes. Em vez de se conformar com uma dada realidade, essas pessoas começam a sofrer por ela e opõem-se a ela».[12]

4. UM OLHAR ÀS NOSSAS ORIGENS E ÀS MUITAS TESTEMUNHAS DA FÉ NA NOSSA FAMÍLIA

Quando olhamos para a experiência de vida de Dom Bosco, tomamos consciência de que a esperança é uma planta com raízes profundas, que partem de longe; raízes que se fortificam através das estações difíceis e dos caminhos que exigem muito sacrifício.

É assim desde os primeiros anos de João nos Becchi, órfão de pai, com Mãe Margarida a ter de  enfrentar tempos de carestia e as dificuldades da convivência doméstica. Quando tinha a esperança muito humana de que houvesse um futuro para ele, sonhando que podia contar com a ajuda e proteção do Padre Calosso, a morte do velho pároco feriu aquela esperança. E a realidade familiar e o olhar atento e agudo de uma mãe que busca o melhor para o filho – mesmo que o coração de mãe sofra – leva João a ser migrante já aos doze anos.

Contudo, é justamente nestas circunstâncias que a palavra e mais ainda o exemplo de sua mãe abrem a visão de João para um horizonte maior, tornando-o capaz de olhar para o alto e ver longe.

Será assim também no momento crucial da sua opção vocacional, quando Margarida pede ao filho que não se preocupe, de modo algum, com ela e o seu futuro e nunca apegue o coração a seguranças terrenas: «Se optares por ser padre secular e por desgraça vieres a ser rico, não te farei uma única visita. Lembra-te bem disto!»[13]

Anos depois, será Dom Bosco, voltando o olhar para o Crucifixo, a reanimar o coração da mãe, sem força e cansada, reacendendo nela a esperança que a levará a permanecer fiel até a morte na mesma missão que compartilhou com seu filho desde os inícios do Oratório de Valdocco.

Esta esperança de raízes fortes será muito necessária para tudo o que Dom Bosco viverá e a que dará vida, desde a sua chegada a Valdocco até ao seu último suspiro.

Pelos frutos se conhece a árvore: das muitas vidas de jovens que ressuscitaram de situações de abandono e desespero, até chegarem à santidade, torna-se claro que a esperança habitava o coração de Dom Bosco e dessa superabundância ele alcançou e transformou a vida daqueles que conheceu. Nos anos mais intensos de trabalho, Dom Bosco, porém, nunca foi um herói solitário. Ele sempre teve ao seu lado quem reavivava nele o ardor da fé, da esperança e da caridade. Tratou-se de um acompanhamento “assim na terra como no céu”. E mais: a confiança ilimitada em Maria foi para ele um alimento permanente de esperança. Quanto mais essa confiança se expressava em empreendimentos humanamente impossíveis – pensemos na construção da Basílica de Maria Auxiliadora e no início das missões na América do Sul – tanto mais Dom Bosco, ele em primeiro lugar, «vê o que são os milagres».

Leia também  Filhos de família

Acreditar que sempre existe um ponto acessível ao bem em todos os corações, em todas as experiências de vida, mesmo naquela que aparentemente parece mais desajustada, é fruto dessa sintonia com o Céu, mas é também o resultado da experiência fundamental de acompanhamento e supervisão de que Dom Bosco padre fez tesouro aqui na terra. De facto, é na escola do Padre Cafasso que Dom Bosco aprende a caminhar ao lado dos mais desesperados, nas prisões e nas cinturas mais pobres de Turim daquele tempo. É assim que Dom Bosco não só «aprende a ser padre»,[14] mas a ser pastor daquele rebanho com um coração como os dos formidáveis semeadores de esperança que percorriam com ele as mesmas ruas das periferias mais pobres: Cafasso, Cottolengo, Murialdo. Para a esperança, somos formados, e somos formados em comum: ela é fruto da comunhão dos Santos “assim na terra como no céu”.

Há um momento na história do Oratório que não pode ser esquecido, porque muito próximo da dificuldade global em que todos ficámos imersos com a pandemia. Estamos em fins de 1854. Rebenta a cólera em Turim. Conhecemos a história e não é necessário narrá-la aqui de novo. A visão de fé e a prática da caridade mesmo de modo heroico não constituem uma virtude própria, caraterística apenas de Dom Bosco ou de poucos com um grau superior de generosidade; é o estilo de vida daquela pequena comunidade educativa. A esperança é uma virtude comunitária, que se alimenta do exemplo recíproco e da força da comunhão fraterna. É o que também nos testemunha o Oratório de Valdocco durante a cólera, como a experiência de muitas comunidades educativo-pastorais em tempo de Covid, tendo na linha da frente comunidades de médicos, enfermeiros e pessoal sanitário que deram e continuam a dar a própria vida para salvar a dos outros.

Momentos de crise como este fazem emergir outra caraterística da esperança como Dom Bosco a viveu. Ele acreditava firmemente na Providência. Uma fé-confiança que cresce cada vez mais com o passar dos anos. É como um fio condutor que atravessa toda a sua existência e tudo aquilo que ele realizou. É talvez a forma mais tangível pela qual se pode contemplar realizada nele “uma esplêndida harmonia de natureza e graça”:[15] aquilo em que o seu coração acredita põe em movimento os passos e as opções de todos os dias, abrindo caminhos de esperança para muitos, mesmo onde parece já não haver saída.

Muitas outras testemunhas de esperança

Encontramos na santidade salesiana exemplos e modelos preciosos de vida que nos encorajam a esperar, como virtude e como atitude de vida em Deus. Faço apenas alguma referência breve e rápida.

O nosso irmão, o Beato Estêvão Sandor (1914-1953), dá-nos um verdadeiro exemplo do que significa passar da divisão à unidade e à comunhão. O sentido claro da sua vocação de Salesiano coadjutor levou-o a fazer uma verdadeira e própria opção em defesa da vida; ele acreditava profundamente que a sua existência devia ser realizada entre a sua gente e a sua cultura, que atravessava momentos de incerteza e desolação. Com uma conduta correta, ele mostra a visão salesiana de como “saber permanecer” na nossa terra de missão para iluminar quem corre o risco de perder a esperança, fortalecer a fé de quem desfalece, ser sinal do amor de Deus quando Ele “parece” estar ausente da história. O Beato Estêvão superou os muros criados pela divisão entre os povos e pela escravidão do totalitarismo ideológico, indo ao encontro do outro e superando todo tipo de temor pessoal ou social.

Belíssima foi a história da nossa irmã, a Beata Irmã Madalena Morano (1847-1908). Distinguiu-se como Filha de Maria Auxiliadora pela audácia apostólica que a tornou aquilo que Dom Bosco sempre desejou das suas filhas no espírito de Mornese: serem monumentos vivos da Virgem. Ela, “Mestra nata”, sabia que a ação libertadora na sua missão salesiana consistia em ensinar as suas jovens a abrirem as fronteiras do coração e da mente para transcenderem os estreitos limites de uma cultura que oprimia com a pobreza e a falta de oportunidades. Sabia ensinar a perseverança e a não ceder às ameaças. A face feminina da força encontrou nela a expressão mais doce e convincente da responsabilidade que temos para com nossos irmãos vulneráveis. Como solução para os tempos calamitosos que teve de suportar, indicou novas direções àqueles que eram ameaçados pelo isolamento e ensinou-lhes a imensidão da bondade de Deus.

No Servo de Deus Padre Carlos Braga (1889-1971) encontramos um exemplo de inteligência pastoral, tanto na sua incansável dedicação às missões como no acompanhamento dos membros da Família Salesiana. Sem desanimar, mas com a esperança própria de quem deposita a própria fé em Cristo nosso Senhor, ele soube ter a paciência tão recomendada por Dom Bosco para saber acompanhar os jovens na construção de uma personalidade madura. Essa paciência foi o fruto do amor que fluía do seu coração missionário, que lhe permitiu construir pontes e não levantar barreiras entre as culturas. O apelo que sentia de promover a unidade entre as pessoas ajudava-o a superar as diferenças que podiam surgir entre os outros, convicto de ser sempre sustentado pela graça divina que gera a cultura do encontro.

Outro exemplo precioso é o do Beato José Kowalski (1911-1942). Quanta fé e quanta coragem são necessárias para transmitir a paz aos outros, mesmo quando já não há nada a oferecer senão a própria existência! O amor oblativo de Jesus, que com a oferta da sua vida à humanidade nos deu o maior exemplo de amor, é profundamente retomado por José Kowalski: um irmão testemunha da paz no meio da guerra, da serenidade no meio da confusão, da misericórdia no meio do ódio.

Servo de Deus Antonino Baglieri (1951-2007) é outro modelo. O caminho para a santidade exige com muita frequência uma mudança de valores e de visão. Foi esse o caminho vivido por Nino que, depois de um longo sofrimento, descobriu na Cruz a grande oportunidade de renascer para uma vida nova. Nino era sempre acompanhado pela mãe, que com amor e compaixão acreditou nele e na sua vida cheia de capacidades; também vivia rodeado de amigos leigos e religiosos que lhe recordavam a beleza da comunhão. Deixou-se tocar pela comunidade que o reforçou, tanto na sua personalidade como na sua fé, e o salvou. Ele entendeu que, deixando-se encontrar pelos outros, se encontrou a si mesmo e deu sentido à sua existência, marcada inteiramente pela misericórdia divina – também do seu leito de enfermo – para ser um “artesão da paz e da alegria”.

Estes e muitos outros são gigantes da fé que viveram com caridade e compreenderam em todo o seu sentido o que significa ter esperança. Quem espera sabe que não caminha sozinho e sabe também que precisa de pessoas que o acompanhem e guiem nesse caminho. O Papa Bento XVI expressa-o de modo muito belo: «As verdadeiras estrelas da nossa vida são as pessoas que souberam viver com retidão. Elas são luzes de esperança. Certamente, Jesus Cristo é a luz por antonomásia, o sol erguido sobre todas as trevas da história. Mas, para chegar até Ele precisamos também de luzes vizinhas, de pessoas que dão luz recebida da luz d’Ele e oferecem, assim, orientação para a nossa travessia».[16]

5. LEITURA SALESIANA DO MOMENTO PRESENTE

Este é o nosso tempo. O tempo que nos é dado viver. Pode ser muito oportuno perguntar-se qual deve ser o melhor modo de enfrentar o pós-pandemia, e, quem sabe, descobrir o valor da esperança num momento em que a maioria das pessoas experimenta o medo ou não vê a hora em que chegue finalmente o momento de poder esquecer o que aconteceu neste ano. Todavia, podemos realmente esquecer o que aconteceu, esquecer as famílias que perderam os parentes? Esquecer os quase dois milhões de vítimas? Esquecer os rostos dos mais frágeis das nossas sociedades? Esquecer tantas pessoas que trabalharam na linha de frente? Seria justo esquecer? Não, certamente não. Antes, seria a pior coisa que poderíamos fazer.

Por isso, perguntemo-nos se o que estamos a viver nos ensina alguma coisa, e se estamos dispostos a mudar alguma coisa, a repensar alguns valores ou visões da vida…

Esperemos que o confinamento que vivemos nos ajude a abrir-nos.

Vivemos em contínuo movimento, com o afã de querer responder a tudo, num ritmo frequentemente desenfreado. Inesperadamente chegou uma “quietude obrigatória”, que talvez nos tenha fechado um pouco em nós mesmos, em nossas casas, nas nossas famílias, em quarentenas obrigatórias e necessárias. Surgiram muitas formas de medo: o medo do outro, sobretudo do outro que está perto ou mais ou menos distante; o medo do contágio que chega sabe-se lá de onde e gera e provoca a maior incerteza.

Por isso, “abrir” deve ser a palavra de ordem. Abrir os espaços, os ambientes, as janelas da vida. Abrir-nos ao encontro com o outro. Abandonar tudo o que nos fecha, recuperar o sentido da nossa abertura, da abertura do coração. Recuperar a visão de um horizonte mais amplo.

De um individualismo crescente a uma maior solidariedade e fraternidade.

A marca de Deus na humanidade é particularmente evidente na capacidade de ir ao encontro dos outros num ato de solidariedade com a sua criação. O egoísmo é a ação contrária, porque busca a autocomplacência, torna-nos autorreferenciais, gera e alimenta a cultura sempre crescente do individualismo que acaba por manifestar a nossa pequenez. Durante a pandemia tomámos, sem dúvida, consciência de que somos muito vulneráveis, frágeis e dependentes. Todos nós. Não apenas alguns. Sob a mesma ameaça coletiva, inimaginável e sentida, a humanidade inteira sente que tem necessidade dos outros. Vivemos precisando do outro. Do cuidado recíproco. Não queremos ficar sozinhos. Que este tempo nos ensine a apostar mais na solidariedade e na fraternidade diante do “vírus do individualismo”.

Quanta razão tem o Papa Francisco! A solidariedade é a maior vitória sobre a solidão. «A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, “em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo”. Nesta tarefa, cada um é capaz “de pôr de lado as suas exigências, expetativas, desejos de omnipotência, à vista concreta dos mais frágeis (…). O serviço fixa sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, sente a sua proximidade e, em alguns casos, até ‘padece’ com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas”».[17] Muitos esperam o nosso sorriso, a nossa palavra, a nossa presença.

Passar do isolamento à cultura do encontro.

Certamente não é fácil sair do próprio isolamento, sobretudo quando ele é tido como um valor. Com efeito, muitas vezes é mais fácil ficar isolado também por medo da proximidade dos outros. Mas no coração humano arde a chama que acende a necessidade absoluta de estar reunido em família, com os amigos, na associação de bairro, no grupo de voluntariado, com os companheiros de escola, com os colegas de trabalho, com a equipa de futebol. Este tempo de vulnerabilidade oferece-nos um espaço para novas formas de empatia e reencontro. É a “cultura do encontro” do outro como outro. «O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, é a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».[18]

Da divisão à maior unidade e comunhão.

Na mesma ótica, temos consciência de que não é possível gerar uma cultura de encontro sem garantir a unidade; a mesma unidade que o Espírito de Deus oferece a quem entra em comunhão com Ele, e que nos une e nos lança na vivência da mesma vocação: ser filhos amados de Deus. Uma lição que aprendemos a partir da dura experiência do isolamento, do caminhar separados na barca da vida, devido ao fechamento das fronteiras (geográficas e também espirituais), permitiu-nos perceber que, afinal, “estamos todos na mesma barca”. Estamos unidos pela humanidade que somos. Contudo, uma humanidade que foi ferida. A Covid é a primeira crise que atinge a todos a nível global, sem distinções. É um grande paradoxo: o vírus que criou divisão pelo medo, agora une-nos, leva-nos a interessar-nos uns pelos outros. Une-nos numa empatia feita de altruísmo, solidariedade, preocupação. Muitas expressões de bem comum e, espera-se, de compaixão e misericórdia. Também nos une na busca de soluções. Provavelmente, o egoísmo que divide é uma doença, muito mais antiga e perigosa que a Covid, que existia e que deve ser curada. Espero que com a chegada da vacina contra o vírus, possamos, finalmente, vacinar-nos também contra a falta de comunhão, obtendo vitória sobre a divisão. Aquilo que nos une é a medicina do Evangelho da esperança e da alegria, que nos torna todos mais humanos e filhos de Deus.

Do desânimo, do vazio e da falta de sentido à transcendência.

Do crer-nos “donos absolutos da nossa vida e de tudo o que existe” chegamos a sentir-nos muito frágeis. Em muitas famílias foi necessário inventar mil histórias para explicar às crianças porque deviam ficar em casa, longe dos avós, dos colegas de escola e dos vizinhos, sem a possibilidade de viajar por quinze ou vinte dias. Recordo a imagem do filme «A vida é bela» (1997) em que o pai (Benigni), na situação muito adversa relacionada com o facto de estar num campo de concentração, inventa um jogo para explicar ao filho que aquilo que estão a viver é como aquele jogo, que se torna a salvação dele.

O vazio deste tempo causou muitos danos. Passámos das muitas seguranças à incerteza de um terreno instável e inseguro. Um vazio diferente das ideologias niilistas e que, em todo caso, nos abre à necessidade de transcendência.

O Senhor fala-nos neste tempo. E o que nos pede? O que nos oferece? Como o acolhemos? «Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não podemos subtrair-nos: a pertença como irmãos».[19] É assim mesmo: nas situações extremas, Deus continua a falar-nos através do coração de pessoas que veem e respondem de modo original, diferente, que faz a diferença.

Não nos salvamos apenas com as nossas forças. Ninguém se salva sozinho

«Uma tragédia global como a pandemia da Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos. Por isso, “a tempestade – dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”».[20]

Acabou o tempo em que dominava a convicção de poder fazer tudo com os nossos recursos, sozinhos, como “gigantes da vaidade” para quem nada é impossível.

Precisamos de superar o narcisismo fácil que nos convenceu de que o universo se inclina diante de nós, iludidos de estarmos na posse de um “súper-poder” sobre tudo e sobre todos… Aprendemos, devido a esta doença, como somos vulneráveis; como precisamos uns dos outros e que sozinhos não somos nada. Descobrimos que o vizinho de casa, do outro lado da rua, é importante: cumprimentar quem quer que encontremos; pôr de parte o anonimato e crer no “nós” como parte de mim, sem o qual não se pode viver. Os outros são o “eu” declinado num “nós”, muito mais dependente da riqueza da humanidade nos seus valores de beleza e de vida compartilhada. Deixemos os medos de parte. Criemos ligações. Cresçamos. Deixemos de rejeitar o outro por ser outro, diferente, estrangeiro, etc. Partamos de um “nós” que une o plural e o diferente com o particular, rico, único, estimulante, irrepetível e belo de cada pessoa, de cada um de nós, precioso em si mesmo.

Não podemos ter medo de redescobrir a fraternidade que nos une enquanto filhos de Deus, muito amados no Filho (cf. Ef 1,5). A partir dessa realidade, compreendamos a solidariedade, a fraternidade, o cuidado dos outros, o respeito pelo valor da vida, pela dignidade da pessoa, pela verdade do outro que é mais do que nunca uma virtude. Somos demasiado preciosos para nos deixarmos levar pelo egoísmo vazio de uma doença chamada indiferença, e pela autocontemplação ou autorreferência. Sobretudo em relação aos nossos caros jovens que são “a sarça ardente”, a “terra sagrada” que nos salva. São justamente eles a nossa grande esperança, que nos projeta para um futuro comum com muitos exemplos de participação e projetos comuns: em prol da Criação e do ambiente, da casa comum e da justiça, da liberdade; da paz e da fraternidade universal.

Novas respostas são necessárias. Uma vida corajosa que seja portadora de algo realmente novo. Resumindo, para ser como Dom Bosco quando hoje a cólera se chama “coronavírus”, é necessário caminhar, sair, ser presença e ser resposta.

Mais do que nunca: presença e testemunho!

Isso mesmo: mais do que nunca, a presença e o testemunho são necessários. A nossa presença e, como testemunho, a alegria que nasce da nossa fé “que espera”, porque «fé e esperança procedem juntas».[21]

E isto vale sobretudo em relação aos jovens que não podemos deixar sozinhos (agora, mais do que nunca!): eles esperam-nos de braços abertos, para podermos habitar novamente a vida deles, com a força de um amor capaz de conquistar tudo, porque nisto tudo só o amor pode triunfar! Precisamos de voltar a sonhar o sonho dos jovens. Precisamos de colocar-nos numa posição que nos permita superar o que o medo impediu que se tornasse realidade. Oratórios, centros juvenis, escolas, centros de formação, obras sociais, paróquias: cada obra nossa deve deixar-se inundar pelo coração vivo, generoso e revitalizante dos jovens que transformam as casas (muros silenciosos) em espaços de vida (a vida dos jovens). Nós queremos essa vida! É essa vida que nos salva! Escutemos o grito dos jovens que pedem presença, atenção, acompanhamento, disponibilidade; eles também pedem que façamos com que eles vejam a face verdadeira de Deus. Se lhes dermos atenção, se os escutarmos, eles pedir-nos-ão mais intensamente que, antes de tantas outras coisas, lhes falemos do Senhor que anima a nossa esperança e não permite que percamos a coragem nem desistamos (cf. 1Pd 3,15). Eles pedir-nos-ão que lhes ofereçamos o “pão de vida” que alimenta o nosso “ser para eles” e o nosso “estar entre eles”. Para gerar aquela vida que o Senhor deseja dar neste momento da história: a vida que não terá fim. É a boa nova da ressurreição que reanima a nossa esperança e nos torna homens novos para um tempo novo. Porque este mundo terá fim. E só restará o que tivermos amado.

6. UMA FAMÍLIA SALESIANA QUE TESTEMUNHA A ESPERANÇA

Como temos podido experimentar, as circunstâncias relacionadas com a epidemia destes meses fizeram emergir alguns sinais de ofuscamento da esperança. Entretanto, desejo reafirmar e indicar alguns sinais da beleza da esperança evangélica, plenamente entendida e vivida, que nos colocam num caminho onde possamos experimentar a força do carisma salesiano vivido na esperança. Sinto que como Família de Dom Bosco na Igreja e no mundo este é o testemunho que se espera de nós: a capacidade de viver na esperança.

Algumas propostas para continuar este caminho.

6.1. Redescubramos que «fé e esperança andam juntas».[22]

Compromisso: imitemos Dom Bosco e a sua grande capacidade de entusiasmar os seus jovens a viverem a vida como uma festa e «a fé como felicidade».[23]

Todos nós somos sustentados não por ideias abstratas e belas promessas, mas por uma esperança fundada na experiência do amor de Deus derramado sobre nós mediante o Espírito Santo que move tudo para o bem.

Mas a esperança não caminha sozinha. Para ter esperança é preciso ter fé. A esperança cristã torna tenaz a fé,capaz de resistir aos golpes da vida; permite ver além de todos os obstáculos, abre o horizonte e permite inserir a nossa vida e a nossa história numa leitura à luz da salvação de Deus. Por isso, a esperança é espera do dom de vida de todos os dias, espera da presença de Deus, um Deus que é Pai (Abbà), ou seja, íntimo, pessoal, ele que é um Deus preocupado e interessado no nosso destino, que se coloca no nosso caminho com a sua paciência e misericórdia. Enquanto reconhecemos a nossa pobreza e fragilidade, Deus põe em nós o seu coração. O encontro da pobreza pessoal e comunitária com o seu coração paterno faz resplandecer a misericórdia.

Pois bem, conscientes da nossa fragilidade e de como hoje é difícil a tarefa de educar e formar as pessoas, precisamos mais do que nunca de ser semeadores de esperança, provocadores de verdadeira esperança, sussurradores dessa mesma esperança. Dom Bosco fê-lo de modo apaixonado e quase natural. E estamos comprometidos com isso porque realmente acreditamos que é a esperança que sustenta a vida, cuida dela e a protege. «É o que de mais divino pode existir no coração do homem».[24] Nesta catequese, o Santo Padre refere-se ao grande poeta francês Charles Péguy, que deixou páginas admiráveis sobre a esperança. Numa delas, afirma, de modo poético, que Deus não se admira tanto com a fé dos seres humanos, nem sequer com a sua caridade. O que o enche realmente de admiração e maravilha é a esperança das pessoas: «Que aqueles pobres filhos – escreve – vejam como vão as coisas e que acreditem que será melhor amanhã de manhã».

Leia também  Pe. Ángel Artime reeleito Reitor-Mor da Congregação Salesiana

Com esta confiança, como educadores, como acompanhantes das famílias, das classes populares e do povo de Deus em geral, convido-vos: nunca percamos a esperança, cultivemos um olhar rico de esperança diante da vida,nunca a extingamos no nosso coração, sejamos luzes que convidam à esperança com o testemunho da nossa vida, transmitamos a felicidade no modo simples, mas autêntico de viver a nossa fé.

6.2. Aprendamos que a oração é escola da esperança.[25]

Compromisso: caminhemos com os jovens e com suas famílias orando, aprendendo a orar melhor e exercitando a esperança orando sempre melhor.

«Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração».[26]

Caraterística da nossa espiritualidade salesiana é perceber Deus como muito próximo, muito presente nos eventos e com quem, na nossa simplicidade, podemos entrar em diálogo “com o coração”, um diálogo simples, próprio dos filhos.

Como membros da Igreja, estamos conscientes de termos nascido como Ela na oração e que a oração sustenta o seu e o nosso crescimento. Oração que é escola de esperança. Apresentando a nossa fragilidade nesse encontro pessoal com o Amor, aprendemos a deixar-nos amar por Ele. Em resumo, somos chamados a desenvolver um clima interior de confiança para com o Senhor, entregando-nos a Ele, como centro de tudo. Ele que torna possível viver em plenitude. Coloquemos, então, os nossos pensamentos, desejos, atividades, sofrimentos, esperanças e sonhos no coração de Deus, lançando-os no seu coração.

A vida espiritual amparada pela oração é unificante, dá sentido aos acontecimentos, sentido àquilo que que vivemos e fazemos e, com a oração, descobrimos o sentido da gratuidade da vida, nossa e das pessoas que nos foram confiadas. Esta perspetiva de oração como dom é essencial para o itinerário espiritual, sabendo que tudo nos é dado pelo Senhor.

Na encíclica que o Papa Bento XVI ofereceu à Igreja, são reportados alguns exemplos concretos de esperança na oração como a vivida pelo cardeal vietnamita Nguyen Van Thuan que, durante os trezes anos de prisão – nove dos quais em total isolamento e solidão, numa situação que teria sido de completo desespero para qualquer pessoa –, escutar Deus, poder falar com Ele, foi a força da sua esperança e que fez dele, já ali e depois de libertado, testemunha autêntica da esperança, «daquela grande esperança que, mesmo nas noites da solidão, não declina».[27]

Como Família de Dom Bosco, Família Salesiana, daremos passos significativos em todos os ramos desta frondosa árvore amada pelo Espírito se crescermos na escola de esperança que nasce da oração e se caminharmos também ao lado dos nossos jovens e de outras pessoas que encontrarmos.

6.3. Cresçamos vivendo com o sentido do trabalho da vida quotidiana.

Compromisso: ajudemos os jovens e suas famílias, e o Povo de Deus, a descobrir os dons que Deus nos dá, sem lamentar-nos, propondo objetivos que entusiasmem e afastem a monotonia e a mediocridade.

Façamos da vida quotidiana uma oportunidade preciosa de experimentar, não obstante o trabalho e o cansaço, que existe um Amor que nos ultrapassa, e na consciência de que o nosso trabalho não é indiferente a Deus e, portanto, também não é indiferente ao desenvolvimento da vida, da nossa vida e da mesma história que procuramos construir e do Reino de Deus para cuja realização queremos contribuir.

Creio que este é um horizonte magnífico para educar à esperança. Antes de tudo, pela certeza que nasce da fé, confirmando não só que Deus nunca se deixa vencer em generosidade, mas que Deus sempre age e e nos surpreende, mesmo no meio das nossas dificuldades.

extraordinário só acontece quando se começa a viver as pequenas coisas comuns; a vida quotidiana, a de todo cristão, é feita de gestos repetidos, de muito trabalho e sem muitas gratificações, mas também de alegrias íntimas contidas, de encontros verdadeiros, de imprevistos que surpreendem a alma.

O escorrer dos dias reivindica um regresso paciente a si mesmo, uma tomada de consciência da própria vida. Esperança e paciência são as duas atitudes a ser testemunhadas como cristãos justamente no nosso mundo com ritmo tão veloz. A propagação do medo nas nossas sociedades também se deve ao facto de se ter perdido o sentido da espera e, portanto, da paciência e da esperança. Por isso, esperança e paciência estão estreitamente interligadas e o ato de esperar já contribui para a superação da prova.

Isto também é possível porque há uma “confiança natural”, típica do nosso espírito salesiano, que nos leva a confiar nos recursos naturais e sobrenaturais de cada pessoa, e sobretudo de cada jovem, que nos leva a não nos lamentar do tempo em que vivemos, mas a apreciar os valores presentes no mundo e na história (mesmo nestes tempos difíceis), e a «abraçar o que é bom» (1Ts 5,21). De facto, compartilhamos com o Card. Nguyen Van Thuan a convicção de que o hábito de se lamentar é como uma epidemia contagiosa cujos sintomas são o pessimismo, a perda da paz, os medos e a perda daquela paixão pela vida que deriva do facto de estar unido a Deus.

Dom Bosco experimentara que nada pode compensar o valor das relações autênticas, de sentir-se amado, de sentir-se em família, em casa. E essas relações foram uma forma poderosa de proteção diante da pobreza e da solidão dos seus jovens. Com efeito, ele foi um mestre em redescobrir o caráter concreto da felicidade nas pequenas coisas, nas atenções dispensadas a todos, revelando como o tesouro do nosso Sistema Preventivo foi preservado nos encontros afetuosos e no cuidado das relações. Gestos mínimos, que às vezes se perdem no anonimato do quotidiano; gestos de ternura, de afeto, de compaixão, que, contudo, são decisivos, importantes para a esperança dos outros. São gestos familiares de atenção às particularidades e aos pormenores de todos os dias e que fazem com que a vida tenha sentido e exista comunhão e comunicação entre nós.

6.4. Vivamos a esperança especialmente nos períodos de dificuldade e desânimo.

Compromisso: Deixemo-nos educar por Deus. Confiemos n’Ele nos momentos de escuridão. S. Teresa d’Ávila, grande mística, reconhece que a aridez é um convite de Deus para «seguir em frente».

Todos nós já experimentámos períodos de dificuldade e de desânimo na vida. De um modo ou outro, fomos chamados a lidar com algumas experiências pessoais dolorosas, humanamente difíceis. Por vezes, os dias, as atividades, a oração, toda a nossa vida, pode parecer inesperadamente vazia, interrompida.

Mas juntamente com o sofrimento e a dor presentes em toda a vida humana é-nos dado um estremecimento de estupefação e esperança. De facto, «a grandeza da humanidade é determinada essencialmente pela sua relação com o sofrimento e com aqueles que sofrem».[28]

O sofrimento e a dor, num momento ou noutro, parecem presentes na vida de todas as pessoas. Jesus não amou o sofrimento, nem nunca o justificou. Antes, quando encontra quem é marcado pela dor, comove-se e frequentemente cura o doente, mostrando que a dor não era realmente vontade de Deus. Perante isto, em vez de nos voltarmos passivamente para nós mesmos, cansados ​​e desanimados, somos chamados a cultivar a coragem, que na vida moral e espiritual é indicada pelo termo fortaleza. De facto, a consciência da fé está ligada a esta fortaleza indispensável para a qualidade da vida.

Muitos crentes reconhecem-se precisamente nos seus momentos de máxima dificuldade, sofrimento, quando parecem oprimidos por problemas maiores do que eles. Essas provas não devem ser lidas como acidentes ocasionais de percurso, mas como momentos de purificação necessária e convite a abandonar os critérios adotados até então, para fazer uma experiência mais íntima de Deus, deixando-se educar por Ele e, desta forma, cumprir também a missão recebida. O que nos é pedido é caminhar confiando, mesmo nos momentos sombrios.

Como crentes, estamos realmente convencidos de que só Deus tem o poder de transformar os momentos mais extremos e difíceis da nossa existência na esperança certa de que o nosso sofrimento, a nossa dor e a nossa tristeza não são em vão ou inúteis.

É como se a pessoa se encontrasse diante de uma encruzilhada e nela tivesse que decidir entre desistir ou fazer emergir novas energias humanas e espirituais. Neste último caso, a luta, as tensões, os conflitos existem, mas permanecem estéreis; somos chamados a conservar a esperança nos tempos sombrios porque o Evangelho sempre anuncia uma boa notícia: a vida pode recomeçar, sempre podemos nascer de novo. «Spes ultima dea», diziam os antigos: «A esperança é a última a morrer». A esperança é o último baluarte da vida. É como a luz do pôr do sol, que ainda consegue dar vida aos objetos antes de serem confundidos nas trevas e nos permite ver o caminho de regresso a casa antes que desça a noite e tudo seja envolvido na escuridão.

6.5. A esperança como retorno decidido aos pobres e excluídos

Compromisso: na nossa Família, a fidelidade ao Senhor com Dom Bosco passa sobretudo pela opção preferencial pelos mais pobres, os mais abandonados e os excluídos.

Por isso, hoje se espera, mais do que nunca, que nos distingamos carismaticamente como Família Salesiana, pela opção original pelos pobres e excluídos, pelos descartados, os abandonados, os sem voz e sem dignidade. Não há outra via para nós. A fidelidade ao Senhor com Dom Bosco impõe que nos reconheçamos na dor do outro.

Em plena comunhão com a tradição e o ensinamento mais puro da Igreja, desde os primeiros Padres latinos e gregos até os últimos pontífices, temos de ser e sentir-nos responsáveis deste mundo e da vida de cada um. Toda a injustiça contra o pobre é uma ferida aberta, e é um ataque (mesmo se não acreditamos nisso) à nossa dignidade. Nunca nos devemos esquecer que não vivemos só para nós mesmos. Por isso, a esperança torna a caridade perseverante. Jesus convida a este amor obstinado, a ter a mente e o coração o mais possível abertos à sua ação, que chega de maneira igualmente imprevista em relação às situações negativas com as quais nos defrontamos; a fazer-se e ser de facto um eficaz “hospital de campanha” para todos e, de modo especial, para os jovens feridos. Isto requer de nós mais coragem, mais confiança e mais empenho. Não é este o tempo de “arrumar os remos na barca”!

Como família religiosa nascida do coração pastoral de Dom Bosco, somos “a esperança daqueles que não têm esperança”: os jovens mais necessitados e mais vulneráveis, que estão no centro das atenções de Deus e devem ser sempre os nossos destinatários privilegiados.

Eles não são para nós um “muro”, mas uma “porta”: o que os pobres nos ensinam é a autoridade de quem sofre e é marginalizado. Empenhemo-nos em levar a esperança ao coração destas pessoas, dar-lhes conforto, confortar os fracos e os carenciados, ir ao encontro das variadas necessidades humanas e espirituais que nos interpelam todos os dias. A esperança caminha na direção da ética e do agir. Nisto, a esperança cristã diferencia-se de um vago otimismo – como já disse.

Não deixem roubar a vossa esperança, diz-nos o Papa Francisco, e muito menos que suprimam os diversos sinais de esperança e de renascimento que emergem no mundo. De facto, muitas pessoas felizes por amar Jesus servindo-o nos pobres, generosas e solidárias, dão-nos ensinamentos preciosos, demonstrados com a própria vida!Agradeçamos ao Senhor por esses exemplos de vida coerente e embebida de amor. Homens e mulheres para os pobres, sinal de esperança que o Senhor colocou no nosso caminho: vidas gastas e doadas aos irmãos por essas pessoas “normais”, mas heroicas, de uma heroicidade simples, entretanto resistente, fundada no Evangelho vivido e anunciado.

6.6. Reconhecer-se no sofrimento do outro

Compromisso: ser fiéis hoje a Dom Bosco, Pai da nossa Família Salesiana, significa estar ativamente da parte de quem sofre qualquer tipo de injustiça.

«Como é perigosa e prejudicial esta habituação que nos leva a perder a admiração, o fascínio, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade e da justiça!»,[29] escreve o Papa Francisco na Evangelii Gaudium. E isto tem a ver tanto com as injustiças, que derivam dos sistemas económicos, causa de tanta pobreza, quanto com todo o tipo de sofrimento humano.

Lendo o Evangelho não resta dúvida de que a economia e os bens devem estar ao serviço das pessoas, sobretudo daquelas que vivem em condições de real pobreza. Portanto, um cristão com autêntica consciência social e sentido de justiça, e ainda mais nós, consagrados e leigos da família de Dom Bosco, não podemos aceitar uma forma de economia baseada exclusivamente na “lógica do crescimento” (tão desejado depois desta pandemia), se ela for causa certa do aumento da pobreza e dos pobres: duas realidades que sempre caminham a par e passo.

Dizer não, portanto, a uma economia de exclusão é dizer não a qualquer iniciativa política e económica que esqueça os mais frágeis. Os cristãos e os membros da Família Salesiana devem sentir-se incomodados nesta situação. Diante destas realidades não se pode ficar “neutro” ou “sem opinião”. O que está em jogo é a dignidade dos nossos irmãos e das nossas irmãs e, certamente, devemos “descer” do pedestal das nossas seguranças para, sem nos envergonharmos, olhar para a realidade deles. Foi o que o Senhor Jesus fez, mesmo sendo considerado social e politicamente incorreto.

Embora sabendo que aquilo que adiante direi poderia ser inconveniente para nós – para mim em primeiro lugar – creio, em consciência, que devemos sentir como insuportável para as nossas consciências a dor dos outros,demonstrada na realidade dos sem-abrigo, dos migrantes por necessidade, dos menores abandonados, das crianças-soldado: uma cascata infinita de realidades dolorosas. 

Esta é uma oportunidade preciosa para nos posicionarmos com clareza e educar os nossos jovens ao compromisso social e político à luz do Evangelho e à esperança irradiada por ele, porque amamos este maravilhoso mundo no qual Deus nos colocou e amamos a humanidade à qual pertencemos – com os dramas que acabei de descrever e com o cansaço de ver que nada parece mudar radicalmente –, também porque amamos os seus anseios e esperanças e a terra como nossa casa comum, pois este é o nosso hoje, o nosso mundo pós-pandémico.

6.7. Converter-se à esperança é crer no projeto do Evangelho

Compromisso: por isso, como Família Salesiana de Dom Bosco, não podemos deixar de mostrar quem é a razão da nossa Esperança, o Deus de Jesus Cristo e o seu Evangelho.

Nas maiores crises, desaparecem muitas certezas, muitas “seguranças” que pensávamos ter, sentidos atribuídos que, na realidade, se revelam irrealizáveis. Mas, de facto, os grandes valores do Evangelho e a sua verdadepermanecem quando desaparecem as filosofias e os pensamentos oportunistas ou momentâneos. Os valores do Evangelho não enfraquecem, não se “liquefazem”, não desaparecem. Por isso, como Família Salesiana de Dom Bosco não podemos deixar de revelar aquilo em que acreditamos.

A evangelização deve ser para nós uma alegria existencial e verdadeira, que se enraíza no Mistério de Cristo, o Deus encarnado, morto e ressuscitado, que penetra no mais íntimo da realidade humana. O Evangelho é a mensagem absoluta de alegria que infunde força e audácia para superar toda a tristeza (cf. Rm 9,2); o Evangelho é o sopro vital da esperança: esperança no Senhor que está entre nós e vem ao nosso encontro continuamente; esperança que gera alegria; esperança que nos encoraja e nos lança num compromisso concreto em favor dos outros e na história; esperança que nos faz sentir, como família de Dom Bosco, mediação de Deus para os outros, sinais e portadores do seu amor; esperança que nos abre para a vida eterna já iniciada aqui.

«A fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira o bem do mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. (…) Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo de várias maneiras aqui e além».[30]

Deveríamos ser muito encorajados a pensar que ninguém é esperança em si mesmo, mas que cada um de nós pode ser o eco da esperança para os outros, aquela esperança autêntica que é a realidade mais divina que possa existir no coração do ser humano!

Porque, «se Jesus venceu o mundo, é capaz de derrotar em nós tudo aquilo que se opõe ao bem. Se Deus estiver connosco, ninguém nos roubará aquela virtude, da qual temos absolutamente necessidade para viver. Ninguém nos furtará a esperança».[31]

6.8. Um compromisso concreto a assumir como Família Salesiana

Divulguemos e leiamos (sozinhos, em família ou em grupo) a última encíclica, Fratelli tutti, que põe a fraternidade no centro de tudo. A encíclica oferece-nos uma bela reflexão sobre o modo de curar o mundo, reparar a casa comum dos danos humanos e ambientais e reduzir as consequências da crescente desigualdade social e económica. Com o Papa, estamos certos de que só como irmãos conseguiremos conservar o património que o Criador colocou em nossas mãos, vencendo a tentação da divisão e da opressão do outro. Somente juntos construiremos um mundo melhor que dê esperança às futuras gerações.

6.9. Uma verdade a aprofundar como fruto deste Lema 

Com o objetivo claro de deixar uma lembrança muito particular, concluo o comentário ao Lema 2021 com algumas linhas que exprimem muito bem o que compartilhei nestas páginas e que convido a interiorizar, antes de fazer uma última referência à nossa Mãe Maria que espera o nascimento do seu Filho amado, imersa sem qualquer pretensão no grande projeto da redenção.

«Nós, cristãos, vivemos de esperança: a morte é apenas a penúltima palavra; a última é de Deus, a da ressurreição, da plenitude de vida e da vida eterna. Quando nos abandonamos à entrega a Deus e confiamos nele, temos uma certeza que dá serenidade, ou seja, que nós, homens, não temos tudo em nossas mãos, mas estamos nas mãos de Deus. O cristão não configura a sua vida com as próprias forças, mas com a força do Espírito Santo. Em tempos de incerteza, precisamos de abandonar-nos com confiança à sua guia».[32]

7. MARIA DE NAZARÉ, MÃE DE DEUS, ESTRELA DA ESPERANÇA

Maria, a Mãe, bem sabe o que significa ter confiança e esperar contra toda a esperança, confiando no nome de Deus.

O seu “sim” a Deus despertou a esperança para a humanidade.

Ela conheceu a impotência e a solidão no nascimento do Filho; conservou no seu coração o anúncio de uma dor que lhe haveria de trespassar o coração (cf. Lc 2,35); viveu o sofrimento de ver o filho como “sinal de contradição”, incompreendido, rejeitado.

Conheceu a hostilidade e a rejeição em relação ao seu Filho até quando, aos pés da cruz no Gólgota, compreendeu que a Esperança não morreria. Por isso, permaneceu com os discípulos como mãe – «Mulher, eis o teu Filho» (Jo19,26) – como Mãe da Esperança.

«Santa Maria, Mãe de Deus, Mãe nossa,
ensinai-nos a crer, esperar e amar convosco.
Indicai-nos o caminho para o reino!
Estrela do mar, brilhai sobre nós
e guiai-nos no nosso caminho!».[33]

Amen .

P. Ángel Fernández Artime, S.D.B.
Reitor-Mor

Roma, 25 de dezembro de 2020.
Natal do Senhor


[1] Francisco, Christus Vivit, 72.
[2] G. Colombero, La Malattia, una stagione per il coraggio, Paoline, Roma 1981, p. 66.
[3] Apenas para citar alguns dos que encontramos na teologia e na história da filosofia, podemos iniciar com São Paulo, Santo Agostinho de Hipona, São João da Cruz, Lutero, R. Bultmann e J. Moltmann. E ainda, R. Descartes, E. Kant, Baudelaire e M. Heidegger, G. Marcel e J. P. Sartre, R. Le Senne, O. F. Bollnow; e alguns espanhóis como Miguel de Unamuno, Ortega y Gasset e o grande escritor Manuel Machado.
[4] Bernardo de Claraval, Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, XXVI, 5 in PL 183, 906.
[5] Segundo a conhecida expressão de Christian Duquoc que afirma a total autonomia da história.
[6] Bento XVI, Spe Salvi, 1.
[7] Ibid, 27
[8] Francisco, Meditação do Santo Padre no momento extraordinário de oração em tempo de epidemia, Cidade do Vaticano, 27 de março de 2020.
[9] Francisco, Audiência geral da quarta-feira 23 de agosto de 2017.
[10] Cf. Bento XVI, Spe Salvi, 2.
[11] Este é o título que o Papa Bento escolheu para a primeira parte da encíclica Spe salvi.
[12] J. Moltmann, Experiencias de Dios, Sígueme, Salamanca 1983, pp. 103-104.
[13] MBp I, Editora Edebê, Brasília, 2018, p. 239.
[14] J. Bosco, Memórias do Oratório de São Francisco de Sales, in ISS, Fontes Salesianas: Dom Bosco e sua obra. Coletânea antológica, Editora Edebê, Brasília 2015, p. 1312.
[15] Constituições e Regulamentos SDB, 21.
[16] Bento XVI, Spe Salvi, 49.
[17] Francisco, Fratelli tutti, 115.
[18] Ibid., 30.
[19] Francisco, Fratelli tutti, 32.
[20] Ibidem.
[21] Francisco, Audiência geral da quarta-feira, 20 de setembro de 2017.
[22] Ibidem.
[23] XX Capítulo Geral Especial dos Salesianos de Dom Bosco, n. 328.
[24] Francisco, Audiência geral da quarta-feira, 27 de setembro de 2017.
[25] Cf. Bento XVI, Spe Salvi: este é o título da primeira parte da encíclica, que começa no n. 32.
[26] Bento XVI, Spe Salvi, 32.
[27] Ibidem.
[28] Bento XVI, Spe salvi, 30. Cf. Francisco, “Un plan para resucitar” a la Humanidad tras el coronarivus (PDF), in Vida Nueva Digital, 17 abril de 2020, p. 38.
[29] Francisco, Evangelii Gaudium, 179.
[30] Ibid., 278.
[31] Francisco, Audiência geral da quarta-feira, 27 de setembro de 2017.
[32] W. Kasper – G. Augustin, Comunione e Speranza. Testimoniare la fede al tempo del coronavirus, LEV, Città del Vaticano 2020, p. 121.
[33] Bento XVI, Spe Salvi, 50.

Artigos Relacionados