Quando Deus se torna uma verdadeira paixão e está na pessoa como o respiro, quando Ele “entra nas veias” e inunda todo o ser, as maravilhas acontecem e surgem: as universidades, os hospitais, as escolas, as instituições ligadas aos pobres… É neste ambiente de profunda fé que surge a intuição de S. João Bosco antecipando-se à pedagogia, ao serviço social, ao ensino, à Convenção dos Direitos das Crianças. Assim surgiu o Sistema Preventivo que um século antes foi precursor notável dos Direitos da Criança, onde tal categoria jurídica não existia formalmente.
A sua intervenção, em prol dos jovens pobres e abandonados de Turim, alinhou-se de forma impressionante com os princípios que, mais de um século depois, seriam consagrados em documentos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (CDC) de 1989.
Nascida da fé, a obra de São João Bosco, desenvolvida na Itália oitocentista, é um testemunho perene do seu profundo compromisso com Deus que depois se repercute com a dignidade humana e o bem-estar integral dos jovens, especialmente dos mais vulneráveis e marginalizados. A sua metodologia educativa, o Sistema Preventivo, assenta nos pilares da razão, religião e amorevolezza (amor educativo, amabilidade), promovendo um ambiente de acolhimento e crescimento moral, intelectual e espiritual. Embora a linguagem dos “direitos da criança” fosse inexistente à época, a prática pedagógica de Dom Bosco antecipou e incorporou, na sua essência, muitos dos artigos que hoje compõem a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC).
A premissa fundamental do Sistema Preventivo é a prevenção do mal e a promoção do bem, através de uma presença constante e amorosa do educador na vida do jovem. Contrariamente ao sistema repressivo, que se baseia na coação e no castigo após a transgressão, o método salesiano aposta na criação de um ambiente onde a transgressão é ativamente desencorajada pela presença benéfica e pelo carinho, permitindo ao jovem experienciar um prazer interior que o afasta da delinquência. Esta abordagem proativa oferece aos Direitos Humanos a ênfase na educação preventiva.
A amorevolezza, muitas vezes traduzida como amor preventivo ou caridade paciente e benigna, é a força motriz que unifica a prática de Dom Bosco e os princípios dos direitos da criança. Dom Bosco pedia aos educadores que fossem “firmes em querer o bem e em impedir o mal, sempre, porém, com doçura e prudência”, mostrando-se sempre afetuosos e fazendo ver que todos os esforços tinham por objetivo o bem da alma do jovem. Dizia “Conseguir-se-á mais com um olhar de bondade, com uma palavra animadora, que encha o coração de confiança, do que com muitas repreensões que só trazem inquietações e matam a espontaneidade”.
Esta atitude reflete diretamente o princípio da dignidade intrínseca de toda a criança, um conceito basilar da CDC.
A ligação entre o Sistema Preventivo e a Convenção sobre os Direitos da Criança pode ser analisada através de vários eixos:
O direito à Educação (Artigo 28 da CDC): Dom Bosco não só ofereceu educação, como também formação profissional e a possibilidade de um emprego digno com um contrato de trabalho protegido (é o primeiro contrato trabalho redigido que não permitia que o trabalho se prolongasse para além, das 8 horas). O oratório era espaço onde a instrução era vista como um caminho para ser bom cristão e ter a vida honesta, garantindo o desenvolvimento integral dos jovens.
O Direito à Proteção contra a Violência e Maus-Tratos (Artigo 19): O cerne do Sistema Preventivo rejeita categoricamente o castigo físico ou a violência moral. Dom Bosco gabava-se de nunca ter usado castigos violentos, mesmo com os jovens mais difíceis, optando sempre pela razão e pela persuasão. A sua pedagogia da aliança baseia-se no diálogo e na mútua compreensão, não na imposição autoritária.
O Direito à Participação e Liberdade de Expressão (Artigo 12 e 13): O ambiente salesiano, pautado pela confiança mútua, encorajava os jovens a serem protagonistas (criadores de companhias, hoje nomeadas associações, grupos, clubes…) da sua própria formação, não meros destinatários passivos da ação educativa. Dom Bosco ouvia os seus rapazes, e a “boa-noite” era um momento de partilha e orientação, onde os jovens podiam exprimir-se num clima de família. Sobre este assunto ocorre referenciar os nove mil jovens de todo o mundo salesiano presentes na JMJ Lisboa 2023, seis mil dos quais de Portugal e Cabo Verde ou as centenas de jovens envolvidos nos acampamentos, nos inúmeros grupos criados pelos próprios alunos das escolas. Referencio a iniciativa do guitarrista Luca Monteiro, adolescente do 9º ano da Escola salesiana de Manique de uma vez por mês animar o recreio do almoço tocando e cantando no pátio.
O Direito ao Desenvolvimento Integral (Artigo 6): O objetivo salesiano não era apenas evitar o mal, mas promover o crescimento em todas as dimensões: física, intelectual, social e espiritual. As atividades lúdicas, o teatro, a música e o desporto eram componentes essenciais do oratório, reconhecendo a importância do bem-estar holístico para o desenvolvimento saudável da criança.
Em suma, Dom Bosco foi um visionário cujos métodos, baseados na caridade e no profundo respeito pela pessoa do jovem, se traduziram em ações concretas que, de facto, defendiam e promoviam os direitos das crianças e adolescentes. O seu legado mostra que a defesa da dignidade humana e dos direitos fundamentais da infância não é apenas uma questão de enquadramento jurídico, mas, acima de tudo, um imperativo ético, religioso e de amor educativo. O Sistema Preventivo e a Convenção dos Direitos da Criança partilham, assim, o mesmo objetivo central: o desenvolvimento integral e o bem-estar dos menores, com a diferença de que Dom Bosco o viveu e aplicou um século antes da sua consagração legal internacional.








