Rosto de Cristo, rosto do Filho de Deus

Dissemos no artigo introdutório que o rosto de Jesus é como um diamante de mil facetas. Já identificámos uma, de grande brilho: a sua paixão irreprimível pelo Reino de Deus. Façamos agora objeto da nossa contemplação uma outra, que foi muitas vezes abordada em chave predominantemente dogmática, mas que gostaríamos de abordar em chave mais francamente evangélica: o seu rosto é um rosto de Filho de Deus.

Uma premissa: os títulos cristológicos e o seu valor

As primeiras comunidades crentes empenharam-se, por diversas razões (devoção, curiosidade, necessidade de responder às perguntas dos novos aderentes…), em tentar esclarecer a identidade do Jesus em quem acreditavam.

Os instrumentos de que dispunham para o fazer eram, antes de mais, os que tinham herdado do Antigo Testamento. Dele, entendido como o prenúncio de Jesus, derivaram expressões como “filho do homem”, “messias”, “filho de David”, “sumo sacerdote”, “servo de Deus”, entre outras, que aplicaram a Jesus.

Em segundo lugar, utilizaram categorias helenísticas, próprias do mundo com que entraram em contacto e com o qual tinham necessariamente de lidar. Um mundo que também usava a categoria “filho de Deus” nas suas fábulas mitológicas, e no qual a categoria “lógos” (palavra, verbo, razão) estava muito difundida, tanto no âmbito neoplatónico como no estoico.

Todas estas expressões foram convertidas em “títulos” que as comunidades atribuíram abundantemente a Jesus, na tentativa de exprimir o que, na fé, tinham descoberto n’Ele. Para dizer, sobretudo, o papel que lhe reconheciam no âmbito da salvação operada por Deus.

O uso desses títulos serviu aos crentes, por um lado, para explicitar a pessoa e a ação de Jesus, mas também implicou, por outro lado, um grande risco: o de se tornarem uma “cama de Procusto” com o qual medir Jesus, isto é, de forçarem a sua identidade a ficar dentro dos limites do significado que esses títulos tinham previamente adquirido, sacrificando assim a sua incomensurável originalidade. Um risco que as comunidades nem sempre souberam ultrapassar, como o demonstra a longa e emaranhada história das heresias.

A fé genuína sabe, pelo contrário, que Jesus é em pessoa a medida de todos os títulos que lhe podem ser atribuídos, que o seu significado é definido por aquilo que ele foi e fez, e não vice-versa.

A maneira correta de compreender a filiação de Jesus

Se Jesus em pessoa é, portanto, quem decide sobre o conteúdo dos títulos que lhe são atribuídos pela fé, e não vice-versa, é também Ele quem decide sobre o significado do título de “filho de Deus”, que, apesar da relevância que adquiriu no conjunto dos títulos por razões históricas que não é o caso de recordar, não é exceção a esta regra.

Por isso, a maneira mais adequada de compreender o significado de tal título não é tanto recorrer ao Antigo Testamento, no qual ele era dado ao rei (Sl 2,7), ou a todo o povo de Israel (Sir 36,11; Jr 31,9; etc.), ou aos justos obedientes à vontade de Deus (Sb 2,13). Menos ainda se deve recorrer à literatura helenística, em que o título designava personagens que se acreditavam gerados por uma divindade (Atena, Perseu, Eneias, Aquiles…), e que, por isso, eram capazes de ações extraordinárias, gozando constantemente da proteção divina para o efeito. Por fim, também não se trata de partir filosoficamente de um conceito de Deus e dele derivar o de “filho de Deus”.

A única forma coerente é tomar nota da filiação vivida pelo próprio Jesus. Concretamente, ver como ele viveu como filho de Deus.

Um dado surpreendente

Neste contexto, o Evangelho segundo São Marcos e alguns outros escritos do Novo Testamento fornecem-nos um dado impressionante e significativo: o uso que Jesus faz da designação “abbá” para se dirigir a Deus. Encontramos três preciosos testemunhos disso, que atestam a persistência da sua memória nas primeiras comunidades: Mc 14,36; Rm 8,15; Gl 4,6.

Estudos competentes sobre o assunto chegaram à conclusão de que, neste caso, estamos sem dúvida diante de uma das “próprias palavras de Jesus”. Como já referi no artigo anterior, os escritores do Novo Testamento relatam as suas palavras e ações com grande liberdade. Não têm a preocupação de exatidão objetiva que é típica dos tempos modernos. Por isso, pode haver nos Evangelhos ditos que lhe são atribuídos e que só no seu sentido mais profundo estão relacionados com o que Ele realmente disse. Quanto ao epíteto “abbá”, por outro lado, é certo que saiu da sua boca. E mais, que ele o usava habitualmente para se dirigir a Deus, e que também exortava os seus discípulos a fazerem o mesmo (J. Jeremias).

A expressão estava em uso em Israel naquela época. As crianças usavam-na habitualmente para se dirigirem aos seus pais no âmbito familiar. As crianças pequenas, e nesse caso carregada de um intenso sentimento de afeto, e os filhos adultos, exprimindo com ela particularmente o seu respeito e obediência àquele que lhes tinha dado a vida. Em ambos os casos, denotava um estreito laço de familiaridade e intimidade. Por isso, deve ser traduzido mais por “papá” do que por “pai”. Na verdade, o uso não mudou ao longo dos séculos: ainda hoje está presente entre os judeus.

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Mas o facto de Jesus o utilizar para se dirigir a Deus é uma grande e surpreendente novidade. No meio de um povo habituado, desde há séculos, a um respeito muito acentuado pela alteridade de Deus, deve ter chocado fortemente. De facto, JHWH, o Deus que Israel honrava, era o Deus “santo, santo, santo” da visão de Isaías (Is 6,3) e, portanto, o Deus diferente do mundo. É verdade que ele tinha entrado na história e descido da sua santa morada nos céus para libertar Israel (Êx 3,8), e depois tinha continuado a estar ao seu lado nos vários acontecimentos pelos quais tinha passado ao longo dos séculos, mas o sentimento de um temor sagrado em relação a Ele tinha vindo a crescer no povo. Prova disso é o facto de o seu nome – o sagrado tetragrama JHWH – já não ser pronunciado. Só durante o rito anual de expiação (Lv 17) é que o sumo sacerdote se atrevia a pronunciá-lo, com extrema cautela, no silêncio e na solidão do recanto mais sagrado do templo.

A singularidade do uso que Jesus faz da designação “abbá” compreende-se ainda melhor se considerarmos que se trata de um homem adulto, longe do sentimentalismo típico dos adolescentes; um homem extremamente realista e muito empenhado numa atividade incessante no meio do povo, e não um místico alienado do mundo e fechado na estufa dos seus arrebatamentos espirituais. E mais, sociologicamente ele não era um sacerdote (Heb 7,13-14), pertencendo à categoria dos homens que estavam mais frequentemente em contacto com Deus no âmbito do culto. Além disso, não era oficialmente um mestre, embora as pessoas o considerassem como tal (Mt 8,19; 9,11; etc.), e não tinha autoridade acreditada para adotar atitudes não reconhecidas como legítimas por outros mestres.

A sua maneira de invocar Deus era, de facto, estranha à sensibilidade comum dos seus compatriotas, sobretudo daqueles que se consideravam os chefes de Israel. Em termos religiosos, poder-se-ia dizer que era irreverente e até blasfemo. De facto, foi acusado de blasfémia no processo que o levou à morte (Mt 26,65; Mc 14,64), e não é improvável que a acusação se tenha baseado também nesse facto. Em termos de filosofia da linguagem, poder-se-ia dizer que era altamente metafórico, se por metáfora se entende “um erro calculado” (P. Ricoeur). Conjugar, de facto, o termo “Deus”, que designa o Transcendente e, portanto, de alguma forma, o cúmulo do afastamento, com o termo “papá”, que designa o ser mais próximo e familiar, é, de facto, um “erro”. E Jesus cometeu esse erro conscientemente. A razão é que ele vivia a sua relação com Deus nesta perspetiva, e chamando-O por este nome exprimia o que Ele vivia.

A experiência filial de Jesus

A designação “abbá” condensa, de facto, toda a experiência da relação que Jesus mantinha com Deus, uma relação de filiação intensa e incomparável, que se exprimia nas suas atitudes, palavras e ações.

Lendo os Evangelhos, tem-se a nítida sensação de que Ele vivesse intensamente na primeira pessoa o que propunha aos outros: uma autêntica infância espiritual (Mt 6,25-26; 18,3; Lc 12,6). É claro que esta infância nunca foi nele um infantilismo.

Uma das características mais típicas da infância é a confiança radical nos pais, e é essa confiança que Jesus viveu em relação a Deus.

Ele exprimiu-a com clareza, transformando-a num convite aos seus ouvintes, naquela passagem do Sermão da Montanha que constitui o seu programa: “«Por isso vos digo: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? […] Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? Não vos preocupeis, dizendo: ‘Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?’ […] O vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso.” (Mt 6,25-32). Ou naquele outro discurso, em que exorta os seus ouvintes a não terem medo das perseguições que se desencadeiam contra eles: “Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus. Mais ainda, até os cabelos da vossa cabeça estão contados. Não temais: valeis mais do que muitos pássaros.” (Lc 12,6-7).

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Não é preciso muito esforço para compreender, ao ler os Evangelhos, que Jesus viveu tudo isto antes mesmo de o propor aos outros.

Neste sentido, ele era uma “criança”. Não, porém, no sentido de um infantilismo degradante. O infantilismo é, de facto, uma falta de responsabilidade naqueles que a deveriam ter. Ora, Jesus não aparece em momento algum como um irresponsável que transfere as suas responsabilidades para o Pai. Ele sabe assumi-las todas, e plenamente, com uma determinação impressionante (Lc 9,51).

Poder-se-ia dizer, então, que a sua filiação, sem negar a intensidade emocional que a marca, está carregada daquela corresponsabilidade que ele demonstra ter para com o grande “sonho” de Deus, seu Pai, que ele abraça com entusiasmo e paixão. O facto de se fazer “obediente até à morte, e morte de cruz”, como diz o hino cristológico de Fl 2,8, é um sinal claro dessa corresponsabilidade levada até às últimas consequências.

Não se trata, portanto, da obediência do autómato, que executa sem qualquer discernimento as ordens que recebe de quem o comanda, ou do escravo, que cumpre com submissão e temor o que lhe é ordenado pelo patrão, mas da obediência do filho, que conhece por dentro a vontade do pai e a torna ativamente sua. A sua dedicação irreprimível à causa do reino de Deus, de que falámos no artigo anterior, é precisamente a concretização dessa obediência.

Acrescente-se ainda que esta atitude de filiação terna e ao mesmo tempo madura ele a viveu constantemente, até ao fim, e não a deixou de lado mesmo nos momentos mais difíceis e duros da sua vida, quando tudo parecia contradizer as suas convicções.

Felizmente para nós, os evangelistas não omitiram os momentos trágicos no final da sua história. Não só não os calaram, mas foram também decerto modo implacavelmente realistas ao narrá-los. Eles puseram em evidência o que se pode considerar a sua “última tentação”, aquela que o adversário tinha reservado, segundo o evangelista Lucas, “até um tempo determinado” (Lc 4,13): a tentação frontal contra a sua filiação.

A narração da oração no Jardim das Oliveiras é já uma antecipação do que ele experimentou na cruz. O grito que mais tarde, utilizando o Sl 21,2, Mateus e Marcos puseram nos seus lábios enquanto ele morria na cruz, interpreta bem o que eles compreenderam: a sua relação filial com Deus foi duramente posta à prova, a ponto de lhe causar o sentimento da sua insuportável interrupção. As palavras “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34) permitem-nos perceber a intensidade lancinante da sua dor. Ambos os evangelistas acrescentam que, pouco depois, “com um grito forte, expirou” (Mt 27,50; Mc 15,37).

O evangelista Lucas, por sua vez, utilizando também um texto salmódico (Sl 31,6), completa a narrativa articulando o grande grito final de Jesus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). É o último grito do filho que, embora não compreendendo o que lhe está a acontecer, confia até ao fim no amor do Pai.

Os próprios evangelistas, e com eles outros escritos do Novo Testamento, celebram com alegria a resposta que, a seu modo, o Pai deu a este grito. A Carta aos Hebreus afirma-o expressamente: “Nos dias da sua vida terrena, apresentou orações e súplicas àquele que o podia salvar da morte, com grande clamor e lágrimas, e foi atendido por causa da sua piedade” (Heb 5,7). A resposta paterna foi a sua ressurreição, a intervenção poderosa de Deus que, segundo Paulo, lhe disse nesse momento: “Tu és meu filho, Eu hoje te gerei” (Act 13,33). Foi então que a sua filiação, vivida até esse momento na fraqueza da “carne”, como o próprio Paulo atesta, chegou à sua manifestação plena e definitiva na “glória” (Rm 1,3-4).

Aprofundando ainda mais estes dados, a Igreja dos séculos seguintes veio a definir dogmaticamente a filiação divina de Jesus, fundada na sua eterna “consubstancialidade” com o Pai (Concílio de Niceia), definição que passou a fazer parte da bagagem de verdades centrais transmitidas pelos símbolos da fé. Mas isso não nos pode fazer esquecer o ponto de partida de onde partiu tal confissão de fé: o rosto vivo e fascinante de Jesus de Nazaré, marcado por uma experiência singular e irrepetível de filiação em relação a Deus.

(NPG 2004-04-51)

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