O ser humano nunca vive sozinho. Desde que nasce, vive com os outros – em família, na escola, na sociedade. Esta convivência não é neutra: pode gerar bem e felicidade, quando é vivida de forma justa e solidária, ou mal e sofrimento, quando é marcada pelo egoísmo e pela injustiça. As nossas escolhas pessoais e, sobretudo, as decisões colectivas influenciam profundamente o modo como vivemos juntos. Além disso, ao longo do tempo, essas relações tomam forma em estruturas sociais (como leis, instituições, sistemas económicos) que podem ser justas ou injustas.
A forma como compreendemos o que “deve ser” — o bem, o justo, o verdadeiro — depende sempre da nossa visão do ser humano. A fé cristã tem uma visão própria do homem, revelada por Deus e plenamente mostrada em Jesus Cristo, o Homem perfeito. Essa visão não é apenas teórica: inspira um modo de agir, tanto na vida pessoal como na vida social.
O Concílio Vaticano II, especialmente na constituição Gaudium et Spes, e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja resumem os pontos essenciais dessa visão cristã do ser humano.
1. Unidade de corpo e alma
O ser humano é corpo e espírito ao mesmo tempo. O corpo liga-o à natureza; o espírito abre-o a Deus. Por isso, tudo o que é material — o trabalho, o prazer, a arte, a técnica — pode e deve ser vivido de forma a louvar o Criador.
O cristianismo afasta-se de ideias antigas que desprezavam o corpo e a matéria, como o dualismo (que via o corpo como algo mau) ou o racionalismo moderno (que reduz o ser humano à sua mente). Também rejeita um antropocentrismo exagerado, que põe o homem acima de toda a criação, esquecendo o valor dos outros seres vivos.
2. Dignidade interior e transcendência
O ser humano é mais do que uma peça da natureza ou um número na sociedade. No seu interior, ele transcende o mundo material e é capaz de se abrir a Deus, que o conhece e o chama. Por isso, o cristianismo recusa qualquer visão materialista, que reduza o homem apenas ao seu corpo ou a processos biológicos.
3. Liberdade
A liberdade é o sinal mais belo da imagem de Deus no ser humano. Só sendo livre o homem pode amar e escolher o bem. A sua dignidade exige que actue por convicção pessoal e não apenas por impulso ou obrigação.
A visão cristã distingue-se assim de todas as ideias deterministas (como as de Freud, Marx ou Skinner), que explicam o comportamento humano apenas por causas psicológicas, sociais ou biológicas.
4. Vida em sociedade
O ser humano é naturalmente social. Só convivendo, servindo e dialogando com os outros pode crescer plenamente.
A pessoa é sempre princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais — ou seja, a sociedade existe para o homem, não o contrário.
O cristianismo, por isso, recusa o individualismo (que isola a pessoa e ignora a solidariedade) e também o colectivismo (que anula a liberdade individual em nome do Estado ou da massa).
5. Abertura a Deus
A dignidade mais alta do ser humano está na sua vocação à comunhão com Deus. Fomos criados por amor e para o amor; a nossa vida só é verdadeira quando reconhecemos esse amor e nos confiamos ao Criador.
A fé cristã opõe-se, assim, a todas as formas de ateísmo que negam esta ligação vital entre o homem e Deus — seja em nome da ciência, da psicologia, da filosofia ou da política.
6. A ferida do pecado
Apesar da sua grandeza, o homem traz dentro de si uma ferida profunda. Desde o início da história, a humanidade experimenta a luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Esta divisão interior explica tantas injustiças, violências e misérias. A fé cristã é, por isso, realista: reconhece o valor e a dignidade do homem, mas sabe que ele precisa de ajuda para vencer o mal. Não acredita nem num otimismo ingénuo (“o homem é naturalmente bom”), nem num pessimismo que o condena sem esperança.
Em síntese
A visão cristã do ser humano apresenta cinco grandes verdades:
1. O homem é corpo e espírito, unidos numa só pessoa.
2. Está ligado ao mundo material, mas é superior a ele pela sua consciência e liberdade.
3. É social por natureza: só com os outros se realiza.
4. É aberto à transcendência, criado para dialogar com Deus.
5. É ferido pelo mal, mas chamado a escolher o bem com a ajuda da graça.
A Doutrina Social da Igreja nasce desta visão. Se acreditamos que cada pessoa é imagem de Deus, livre, digna e chamada à comunhão, então temos o dever de construir uma sociedade mais justa, onde todos possam viver com dignidade.
Nos próximos passos, a reflexão da Igreja mostra como esta fé se traduz em acções concretas — na política, na economia, na ecologia e em todos os âmbitos onde a vida humana se constrói.








