Lema do Reitor-Mor 2018

“Senhor, dá-me dessa água” (Jo 4, 15)
CULTIVEMOS A ARTE DE ESCUTAR E DE ACOMPANHAR

Caros irmãos e irmãs de toda a Família Salesiana no mundo,

Como é tradição, no fim do ano apresento o Lema às nossas irmãs Filhas de Maria Auxiliadora e, a partir desse dia, ele é dado à Família Salesiana de todo o mundo. A finalidade do Lema e do seu comentário é ajudar a ter o mesmo coração e o mesmo olhar nas múltiplas iniciativas em todas as nossas Obras e na missão que cada um é chamado a realizar segundo a vocação carismática específica dos grupos da Família Salesiana.

O tema escolhido está em continuidade com o do ano passado e diz respeito ao próximo grande evento eclesial – a XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, convocada pelo Papa Francisco para o mês de outubro de 2018, com o título: «Os jovens, a fé e o discernimento vocacional».

Este tema entra diretamente no coração do nosso carisma. Preparemos o melhor possível este relevante evento da vida eclesial, sensibilizando-nos primeiro a nós próprios para, em seguida, tornar conscientes e participantes muitos leigos e jovens. Com este Sínodo «a Igreja decidiu interrogar-se sobre como acompanhar os jovens a reconhecer e a acolher o chamamento ao amor e à vida em plenitude, e também pedir aos próprios jovens que a ajudem a identificar as modalidades mais eficazes para anunciar a Boa Nova» [1].

O Lema que vos apresento este ano pretende ajudar a Família Salesiana a atingir, em todas as nossas presenças no mundo, o objetivo proposto pelo Documento Preparatório do Sínodo.

O tema escolhido, simples e muito direto, contém dois elementos de vital importância para o mundo de hoje: a escuta e o acompanhamento pessoal. A fim de iluminar estes dois aspetos apresento-vos um belíssimo ícone evangélico, que se presta a múltiplas reflexões: Jesus e a Samaritana [2].

No episódio relatado pelo IV Evangelho verifica-se, não obstante as diferenças étnicas e os antagonismos religiosos, o encontro ao nível mais profundo da pessoa, até ao ponto de induzir uma mudança de vida.

Convido-vos a acolhê-lo com a disponibilidade positiva, própria de cada novo ano, e a aproveitar o que for útil para as diversas situações pastorais da nossa ação.

Posso testemunhar-vos que, nas centenas de encontros tidos nestes quase quatro anos com os jovens dos cinco continentes, cimentei a certeza de que nas casas e nas obras guiadas pelos grupos da Família Salesiana há milhares e milhares de jovens bons, abertos à vida, desejosos de se formar e de aprender – jovens em busca. Muitos deles têm um grande coração, generoso, e desejam servir os outros, fazer alguma coisa pelos outros, ajudar, dar-se.

São jovens que pedem a nossa ajuda para continuar a crescer e a amadurecer na sua fé. Outros não o pedem explicitamente, mas sentem uma grande necessidade de um encontro pessoal e de ser escutados.

Muitos deles estariam dispostos a fazer uma caminhada pessoal e comunitária de discernimento e acompanhamento.

Então, pergunto-me: o que esperamos? Porque não nos decidimos a estar muito mais disponíveis para acompanhar todos os nossos jovens naquilo que é mais importante para a sua vida? O que nos trava? Porquê “ocupar-nos” ou “gastar tempo” noutras coisas, quando esta é uma verdadeira prioridade educativa e de evangelização?

Daremos passos muito mais significativos, meus caros irmãos e irmãs, no dia em que nos convencermos verdadeiramente de que, mais importante do que aquilo que fazemos, é aquilo que somos e quem somos; que, mais importante do que as coisas e as atividades que oferecemos aos adolescentes, jovens e suas famílias, é a presença, a nossa escuta e a nossa disponibilidade para o diálogo. É isto que deixa “marcas de vida” para sempre. E deixa-as nos jovens e nas famílias.

Tudo isto está na base e constitui a motivação verdadeira e profunda da escolha do Lema deste ano.         

I. Um encontro que a ninguém deixa indiferente: “escutar”

Convido-vos, agora, a uma leitura calma e meditada do texto, conhecido como “o encontro de Jesus com a Samaritana”[3]. Este ícone ajuda-nos a compreender o modo como o Senhor estabelece uma relação com a mulher samaritana e que consequências o encontro provoca na vida dela.

Chegou uma mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: «Dá-me de beber.» (Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.) Disse-lhe então a samaritana: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana?» (Jo 4, 7-9).

Jesus e a samaritana anónima provêm de dois povos diferentes, que viveram em mútua oposição ao longo da história, e que se consideram recíproca e radicalmente distantes da antiga fé de Israel. As suas famílias consideravam-se inimigas do ponto de vista social, religioso e político, não por serem diferentes, mas precisamente pelo facto de serem muito semelhantes e, simultaneamente, opostas: cada uma delas estava convencida de ser a autêntica depositária e guardiã da religião original do antigo Israel. Com efeito, os dois povos consideravam-se reciprocamente como impostores.

Eis os protagonistas.

Uma mulher samaritana, ao chegar ao poço, reconhece sem sombra de dúvida a proveniência de Jesus. Ele é judeu, dado o seu caraterístico modo de vestir. É um forasteiro: tem sede, não tem um balde, e a água daquele poço fundo é inatingível. Por outro lado, a mulher não se encontra somente perante um forasteiro; diante dela está, do ponto de vista religioso, um “rival”.

Ao mesmo tempo a mulher, pelo que se pode depreender do conjunto da narrativa, é uma pessoa marcada, para dizer o mínimo, por uma reputação dúbia, com uma situação de vida “irregular”. Trata-se de uma mulher que, do ponto de vista emocional, se sente vítima de uma rejeição.

Além disso, entre Jesus e a mulher samaritana interpõem-se fortes preconceitos étnicos e religiosos: segundo os hábitos do tempo, Jesus teria uma conduta reprovável e transgressiva, pelo facto de pedir água a uma mulher deste tipo.

Supomos que a mulher se sentisse segura diante de Jesus: não é da sua aldeia, desconhece os “fracassos da sua vida” e, além disso, faz parte de um grupo religioso afim, mesmo se herético;

Jesus não tivera contactos com os chefes da sua comunidade e, por isso, nada teria a temer nem com que se preocupar.

Desta situação deduzimos alguns elementos de grande interesse: o encontro acontece num lugar profano e “ao ar livre” – um poço no meio do campo, agora transformado em lugar de encontro com Deus.

Jesus é o verdadeiro protagonista e o sujeito principal do encontro, da escuta e do diálogo inicial; é Ele quem “desenha” a estratégia, começando pela escuta da outra pessoa e intuindo a sua situação.

O seu exemplo é, para nós, de máxima atualidade.

Uma escuta que é acolhimento e encontro pessoal

A escuta é sempre uma arte. «Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais do que ouvir. O primeiro requisito, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual» [4]. É por este motivo que o dom da palavra, especialmente nas relações pessoais, deve ter como correspondente a “sabedoria da escuta”.

Esta escuta, tão importante na missão da Família Salesiana, deve ter como ponto de partida o encontro, oportunidade de relação humana e de humanização, vivida em plena liberdade, «com um olhar respeitoso e cheio de compaixão mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã»[5].

Nas relações com os adolescentes e os jovens, com os nossos alunos, com as famílias das diversas presenças, a escuta autêntica deverá ter em conta algumas situações, como:

  • Favorecer a abertura ao outro com toda a nossa pessoa; é certo que escutamos com os ouvidos, mas podemos também escutar, quando a escuta é autêntica, com os olhos, a mente, o coração, com todo o nosso ser.
  • Prestar toda a atenção àquilo que a pessoa comunica e empenhar-se ativamente na compreensão do que se deseja comunicar, dado que a base da escuta que oferecemos é o profundo respeito pela pessoa.
  • Acompanhar com verdadeiro interesse a pessoa, jovem ou adulta, no que ela busca e espera de si mesma, com verdadeira empatia, que é o contrário de uma cortesia fria e formal. Trata-se de nos identificarmos e de caminharmos com a outra pessoa.
  • Pôr de parte o próprio mundo para se aproximar o mais possível do mundo do outro, com a capacidade de acompanhar sem interferir.
  • Escutar é, dito em poucas palavras, aquela arte que requer atenção solícita às pessoas, às suas lutas e às suas fraquezas, às suas alegrias, sofrimentos e expetativas; por isso, não nos limitemos a escutar alguma coisa, mas escutemos alguém. Desta atenção solícita são ricas as páginas do Evangelho que narram os encontros de Jesus com a sua gente.
  • A escuta, no caso do acompanhamento espiritual pessoal, transcende a dimensão psicológica e adquire uma dimensão espiritual e religiosa, pois visa conduzir, por atalhos, à espera de Alguém.
  • Requer, além disso, um certo silêncio interior, cujo ponto de partida é a aceitação das pessoas como elas são e na situação em que se encontram.
  • O nosso olhar de educadores, dirigido de modo particular aos adolescentes, jovens e suas famílias, assegura-nos que há muito de positivo em cada coração [6]; é necessário fazer emergir estes aspetos positivos. Por isso, a escuta deve significar muito mais do que escutar com paciência; é, antes, proceder de modo a compreender em profundidade o que a pessoa nos diz e porque no-lo diz. É prestar atenção àquilo que verdadeiramente interessa ao outro, aos adolescentes, aos jovens e suas famílias.

A escuta deve levar-nos a compreender de modo adequado as necessidades dos jovens de hoje e, por vezes, as necessidades dos seus pais e das pessoas com quem estamos em contacto no ambiente pastoral. De facto, a maior parte das vezes, os jovens e os seus pais, ou uns e outros, não se aproximam de nós à procura de acompanhamento. Pelo contrário, muitas vezes são impelidos por necessidades, dúvidas, problemas, urgências, dificuldades, conflitos, tensões, decisões a tomar, situações problemáticas a enfrentar.

A nossa formação de educadores e evangelizadores diz-nos que é mais frequente eles aproximarem-se de nós se fizermos algum gesto de aproximação, se mostrarmos interesse por eles, se formos ao seu encontro e nos mostrarmos disponíveis. Estes jovens, filhos de uma cultura “cientificista”, dominada pela técnica e pelo seu mundo de possibilidades, pertencentes a uma geração superconectada, sentem «a necessidade de figuras de referência próximas, credíveis, coerentes e honestas, além de lugares e ocasiões em que possam pôr à prova a capacidade de relação com os outros (quer adultos, quer coetâneos) e enfrentar dinâmicas afetivas. Procuram figuras que possam mostrar sintonia e oferecer apoio, encorajamento e ajuda para reconhecer os limites, sem juízos de valor» [7].

É este o motivo pelo qual, por vezes, tais encontros e tais conversas casuais podem “abrir portas” para um caminho mais profundo e de crescimento…

Foi o que aconteceu no encontro de Jesus com a Samaritana, que só tinha ido ao poço por causa da água.

Sem pretender sugerir técnicas de escuta, desejo ainda assim sublinhar que, se se quiser cultivar as atitudes mais adequadas a uma escuta autêntica, urge prestar atenção a quanto segue:

  • Não ser impaciente a tomar a palavra em vez de deixar que seja o outro a falar.
  • Não interromper continuamente a conversa.
  • Não reagir de forma impulsiva caso haja desacordo.
  • Não deixar de prestar atenção à pessoa que estamos a escutar.
  • Nunca esquecer a necessidade que todos têm de se sentirem escutados.

Será igualmente importante nestes momentos de escuta:

  • Dar à pessoa a oportunidade de comunicar tudo o que tem dentro de si, e que às vezes pode ser um peso ou uma opressão.
  • Fazer perguntas oportunas e evitar as que podem criar desconfiança ou oposição.
  • Aceitar com serenidade os silêncios, dando todo o tempo necessário, sem o preencher com conselhos ou perguntas inúteis, dado que os momentos de silêncio podem deixar o outro tranquilamente à vontade e permitir-lhe refletir no que está a escutar.
  • Proceder de modo que possam ser “reconhecidos os sentimentos”, que constituem uma parte muito importante em toda a comunicação.
  • Evitar a loquacidade, o excesso de palavras, as soluções imediatas. Não esqueçamos que nas coisas importantes há necessidade de tempo, de seguir um processo.

Termino esta parte dedicada à escuta com uma referência a Dom Bosco. Não há dúvida de que a linguagem que atualmente usamos para nos referirmos à escuta, ao discernimento e ao acompanhamento, mostra diferenças substanciais relativamente ao contexto cultural e religioso

de Dom Bosco. Contudo, acho muito belo o seguinte testemunho, que nos faz compreender como os seus rapazes e outras pessoas se sentiam acolhidos e escutados por ele:

«Apesar das suas muitas e graves ocupações, estava sempre pronto a acolher no seu gabinete, com um coração de pai, os rapazes que lhe pediam para falar com ele em particular. Pelo contrário, queria que o tratassem com grande familiaridade e nunca se queixava da impertinência com que porventura eles o importunavam… Dava a todos plena liberdade de fazer perguntas, de apresentar queixas, defesas, desculpas… Recebia-os com o mesmo respeito com que tratava as pessoas importantes. Convidava-os a sentar-se no sofá, ficando ele sentado à secretária, e escutava-os com a maior atenção como se o que eles diziam fosse tudo muito importante» [8].

II. Um encontro que ajuda a pessoa a avançar: “discernir”

Continuemos a leitura da narrativa do encontro de Jesus com a Samaritana, que nos guia neste caminho de escuta, discernimento e acompanhamento:

Respondeu-lhe Jesus: «Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!»

Disse-lhe a mulher: «Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo… Onde consegues, então, a água viva?» (…)

Replicou-lhe Jesus: «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; mas, quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede.» (…)

Disse-lhe a mulher: «Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede.» (Jo 4, 10-15)

Jesus, como bom conhecedor do coração humano, serve-se de todos os recursos da palavra, da conversação e dos gestos, para se encontrar com as pessoas.

  • Faz perguntas, dialoga, explica, narra, presta atenção ao ponto de vista do seu interlocutor; sugere, afirma, provoca reações.
  • Jesus faz compreender à samaritana anónima que Ele compreende a sua situação mais do que ela possa imaginar, e que intui a dor e o sofrimento que, de certo modo, deve ter suportado.
  • Põe a mulher perante a sua real situação e as suas respostas evasivas; chega mesmo à sua verdade mais íntima, como no momento em que confessa: «Não tenho marido».
  • Ao mesmo tempo faz sentir uma empatia compassiva.
  • Jesus não dá por terminado o diálogo, não se dá por vencido face às resistências iniciais.
  • O diálogo ajuda a esclarecer os equívocos e leva a uma autorrevelação autêntica; as respostas enigmáticas e provocatórias suscitam proximidade; a mulher sente-se surpreendida e vai ganhando confiança, ao ponto de querer melhorar a própria vida.

Jesus, que procura sempre o bem do outro, cria uma relação pessoal, em vez de emitir um juízo moral de desaprovação ou censura.

  • Em vez de acusar, dialoga e propõe.
  • A sua linguagem e palavras dirigem-se ao coração daqueles a quem fala.
  • No diálogo com a mulher de Samaria procede com calma, sem pressa de se apresentar como quem pode mudar a sua vida, despertando nela pouco a pouco o desejo de uma nascente de água que promete uma vida especial, diferente e melhor.

Jesus, perito em humanidade, está atento e cheio de interesse pelo mundo interior dos seus interlocutores: lê nos seus corações, perscruta-os e sabe interpretá-los.

A fé e a vocação à alegria do amor

Também hoje o Senhor, como então com a Samaritana, fascina muitos jovens; esta atração está em íntima relação com a fé e com o chamamento que Deus dirige a cada um dos seus filhos e filhas para viver a vida como vocação à alegria do amor.

A fé faz com que os jovens se sintam conquistados pelo modo de ver, de acolher, de relacionar-se e de viver de Jesus, dilatando a sua vida. Como costuma dizer o Papa Francisco, a fé «não é um refúgio para gente sem coragem» [9].

Para nós, que tiramos água da torrente que corre do carisma salesiano suscitado pelo Espírito em Dom Bosco, esta proposta de fé como ponto de partida de todo o ulterior discernimento, baseia-se numa única certeza: acreditamos realmente que Deus nos ama e ama os jovens, acreditamos que Jesus, o Senhor, quer partilhar com eles a sua Vida, e acreditamos que o Espírito Santo se torna presente nos jovens e atua em cada um deles [10].

A luz da fé que, gradualmente e seguindo processos, vai amadurecendo na vida dos jovens que “se deixam tocar por Deus”, permitir-lhes-á tomar consciência do «projeto de amor apaixonado que Deus tem por cada um» [11]. Descobrimos, assim, que «a vocação à alegria do amor é o apelo fundamental que Deus põe no coração de cada jovem para que a sua existência possa produzir fruto» [12].

Este caminho requer uma atitude de abertura à voz do Espírito, em diálogo com a Palavra de Deus, no espaço da consciência, o mais íntimo e sagrado da pessoa.

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Devemos ter presente, com sentido educativo e pastoral, que os jovens, os esposos no seu matrimónio e as famílias chegam a percorrer este caminho muitas vezes impelidos por uma sede de busca originada por algumas situações vitais, como:

  • Situações que levam a pessoa, o jovem, o casal, ou qualquer membro da família, a sentir a necessidade de dar à vida um significado profundo, mesmo na perspetiva da fé. Por vezes, isto acontece porque as pessoas atravessam situações em que se dão conta de forma existencial de que algo não funciona, não está bem.
  • Momentos em que, no matrimónio ou na família, não se está bem, não se vive em harmonia interior e não se encontra sentido pleno no que se vive. Esta situação pode manifestar-se em concreto num “vazio existencial”, que muitas vezes gera desorientação pessoal, mal-estar, tristeza e falta de esperança.
  • Nalgumas sociedades vivemos e somos forçados a viver de tal forma projetados para o exterior, como se estivéssemos numa vitrina em que se vende a ideia de que não há lugar para limitações ou defeitos e, por isso, não se tem o direito de envelhecer nem de fazer anos, porque “é de mau gosto”. Mais do que nunca, há necessidade de uma educação, de um caminho pessoal e comunitário, de uma escuta e de um diálogo que favoreçam a profundidade e a interioridade da vida.

O dom do discernimento

O que até aqui dissemos justifica, entre outras razões, a intenção de a Igreja sublinhar, através do caminho do Sínodo, «o seu desejo de ir ao encontro, acompanhar, cuidar de cada jovem, sem excluir algum» e de não «os abandonar à solidão e à exclusão a que o mundo os expõe»[13]. Isto permite evidenciar como é crucial, juntamente com a escuta, o dom do discernimento. Na tradição da Igreja, este dom tem sido aplicado a uma pluralidade de situações: discernimento dos sinais dos tempos; discernimento do modo de agir moral; discernimento espiritual quando está em jogo a procura de um caminho de vida cristã plena; discernimento quando se trata da própria vocação ou de uma escolha de vida.

Em todo o caso, o diálogo com o Senhor e a escuta da voz do Espírito são sempre essenciais porquanto, como anteriormente sublinhei, devemos ter consciência de que «a pessoa de Jesus e a Boa Nova que Ele proclamou continuam a fascinar muitos jovens»[14].

Porquê sugerir ou promover percursos de discernimento para todos os que estão em situação de se deixar livremente interpelar ou tocar por Deus? Simplesmente porque reconhecemos que o Espírito Santo fala e atua em cada pessoa através dos acontecimentos da existência – sua e dos outros. Fala através de muitas mediações; mas os factos, as experiências, os acontecimentos, a vida, podem ser de per si mudos ou ambíguos, pois estão sempre sujeitos a interpretações muito díspares e subjetivas. Iluminá-los com o método correto será um dos frutos do caminho de discernimento.

O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, oferece-nos três chaves para o discernimento, incluindo o estudo dos sinais dos tempos, na linha do Papa Paulo VI [15]. Estas três chaves ou critérios são: reconhecer, interpretar e escolher.

1. Reconhecer [16], à luz daquilo que o Espírito inspira

  • Para ter lucidez nos momentos altos e baixos da vida, nos períodos de verdadeira luta interior.
  • Para fazer aflorar toda a riqueza emotiva que há na pessoa, e dar nome àquilo que se sente ou que há em nós mesmos.
  • Para tomar o “gosto” que experimento na consonância ou dissonância entre o que sinto e o que há de mais profundo em mim.
  • Tudo isto, iluminado pela Palavra de Deus, que se deve meditar, pondo no centro a capacidade de escuta e a mesma afetividade da pessoa, sem ter medo do silêncio.
  • Assumindo tudo como parte do caminho de amadurecimento pessoal.

2. Interpretar [17]

  • Compreender para onde é que o Espírito de Deus está a chamar através daquilo que suscita em cada um.
  • Interpretar e interpretar-se é uma tarefa muito delicada, que requer paciência, vigilância e até uma certa aprendizagem. É preciso ter consciência de que há condicionamentos sociais e psicológicos.
  • É necessário confrontar-se com a realidade e, ao mesmo tempo, não se contentar com o mínimo, não apontar só para o que é fácil, ser consciente dos próprios limites e possibilidades.
  • Naturalmente, este trabalho de interpretação poderá desenvolver-se num crente, num cristão, com algumas condições:
  • Cultivando um verdadeiro diálogo com o Senhor (como o diálogo que a mulher de Samaria teve com Jesus).
  • Mobilizando todas as capacidades da pessoa, fazendo com que não seja indiferente face ao que acontece e ao que se vive (como na ressonância que o diálogo com Jesus teve no coração desta mulher).
  • Deixando-se ajudar por uma pessoa perita na escuta do Espírito (no caso do texto evangélico, era o mesmo Jesus que guiava).

3. Escolher [18]

Chega-se assim ao momento em que a pessoa, o jovem, os esposos, a família – se o discernimento acontece no âmbito familiar – devem tomar decisões, fazendo um exercício de autêntica liberdade e de responsabilidade pessoal ou comunitária, segundo os casos.

A Samaritana teve de escolher interiormente entre ignorar Jesus e continuar a sua vida como se nada tivesse acontecido naquele encontro, ou tomar a decisão de se deixar surpreender por Ele e envolver-se até ao ponto de ir chamar os seus conterrâneos e de lhes comunicar a comoção que sentia porque aquele homem tinha atingido a profundidade do seu mundo interior.

  • A escolha que se concretiza, quando se faz o discernimento à luz do Espírito, confere muitas vezes às pessoas grande liberdade e, ao mesmo tempo, exige coerência de vida.
  • Por isso, favorecer nas pessoas – e de modo particular nos jovens – escolhas de vida que sejam verdadeiramente responsáveis e livres, constitui o ponto de chegada de todo o processo sério de discernimento no caminho da fé e do crescimento pessoal (e de qualquer pastoral vocacional).

O discernimento – diz o Papa Francisco – é «o instrumento principal que permite salvaguardar o espaço inviolável da consciência, sem pretender substituir-se a ela» [19], seguindo o exemplo de Jesus que, no diálogo com a mulher samaritana, a acompanha no caminho para a verdade e interioridade de vida.

III. Um encontro que transforma a vida: “acompanhar”

Nisto chegaram os seus discípulos e ficaram admirados de Ele estar a falar com uma mulher. Mas nenhum perguntou: ‘Que procuras?’, ou: ‘De que estás a falar com ela?’ Então a mulher deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse àquela gente: «Eia! Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Não será Ele o Messias?»

Eles saíram da cidade e foram ter com Jesus. (…)

Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram nele devido às palavras da mulher, que testemunhava: «Ele disse-me tudo o que eu fiz.» Por isso, quando os samaritanos foram ter com Jesus, começaram a pedir-lhe que ficasse com eles. E ficou lá dois dias. Então muitos mais acreditaram nele por causa da sua pregação, e diziam à mulher: «Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo.» (Jo 4, 27-30, 39-42)

  • A Samaritana entra na cena evangélica como “uma mulher da Samaria” e sai da mesma cena “conhecendo a fonte da água viva”, até ao ponto de sentir a necessidade de correr a anunciar aos seus conterrâneos o que aconteceu; mediante o seu testemunho, permite a muitos aproximar-se de Jesus.
  • Deixando a ânfora, a mulher corre à aldeia para falar aos seus deste homem. E faz-lhes uma pergunta importante: «Não será Ele o Messias?».
  • Igualmente, como se pode deduzir do contexto, Jesus faz compreender aos seus discípulos que está a cumprir a vontade do Pai – aquela vontade que é a Vida da sua vida e que deseja transmitir aos outros.
  • Jesus não oferece um alargamento do conhecimento e do saber àqueles com quem se encontra, neste caso com a Samaritana, antes faz-lhes uma proposta para crescer e mudar de vida. O próprio “poço de Jacob”, símbolo da sabedoria que vem da Lei, perde o seu valor e é substituído pela “água viva”.
  • A imagem de Deus comunicada no encontro com Jesus não é a imagem de um deus impassível, distante, filosoficamente frio. Jesus, pelo contrário, revela um Deus que dá a Vida, que pode ser chamado Pai, que não se deixa enclausurar nem controlar nem possuir, porque é Espírito (culto “em Espírito e Verdade”).
  • A conclusão do encontro ultrapassa o que seria de esperar num final normal, a saber: que a mulher volte à sua vida normal, com o cântaro cheio de água. Ao contrário, a ânfora vazia, que a mulher deixa para ir chamar os seus, fala-nos de um ganho e não de uma perda.

Como Jesus, acompanhando

Há numerosos relatos bíblicos que narram, em primeiro lugar, o acompanhamento de Deus ao seu povo ao longo do tempo.

Na ligação entre os dois Testamentos, João Batista é apresentado pelos Evangelhos como o primeiro acompanhante espiritual; antes do próprio Jesus, João pôde dar testemunho e preparar o caminho, porque Deus tinha falado ao seu coração.

Jesus mesmo, em muitas passagens do Novo Testamento, faz-se próximo e companheiro de viagem para se comunicar e se encontrar de modo pessoal com as pessoas do seu tempo.

O encontro do Senhor com a Samaritana manifesta de que modo o Espírito de Deus pode agir no coração de cada homem e de cada mulher: um coração humano que, por causa da fragilidade e do pecado, se sente muitas vezes confuso e dividido, atraído por solicitações e propostas diversas e tantas vezes contrárias [20].

Face a esta realidade humana, o acompanhamento pessoal surge como um meio muito válido da tradição espiritual cristã, proporcionando aos crentes instrumentos e recursos para reconhecer a presença do Senhor, as suas interpelações e os seus chamamentos.

Como definir o acompanhamento? É «uma forma de diálogo permanente entre companheiros para acolher a Vida, acompanhando a vida»[21]; Um diálogo que tem como última finalidade favorecer a relação entre a pessoa e o Senhor, ajudando-a a ultrapassar eventuais obstáculos.

A exemplo de Jesus no encontro com as pessoas do seu tempo, em toda a experiência de acompanhamento é necessário:

  • Um olhar amoroso, como o de Jesus no chamamento vocacional dos doze[22].
  • Uma palavra autorizada, como a que pronunciou Jesus na sinagoga de Cafarnaum[23].
  • A capacidade de se fazer próximo, como Jesus no encontro com a Samaritana[24].
  • Caminhar lado a lado, fazendo-se companheiro de viagem, como Jesus com os discípulos de Emaús[25].

Para nós, acompanhar os adolescentes, os jovens, as suas famílias e os adultos em geral, implica:

  • Conhecer o caminho que eles percorrem, em que ponto se encontram e para onde se dirigem, para poder caminhar juntos.
  • Assegurar que o encontro seja uma oportunidade de relação, humana e humanizante, e não utilitária. Bem sabemos a importância do encontro na pedagogia salesiana, que põe no centro a pessoa do jovem e cada pessoa, com relações pessoais baseadas no conhecimento recíproco, no interesse pelo bem do outro, na compreensão, na empatia, na confiança. E sabemos que, nisto, Dom Bosco foi um mestre excecional, incomparável.
  • Uma atitude de escuta (uma vez mais se faz referência à arte de saber escutar como base do acompanhamento!), que torna possível conhecer e compreender a realidade da outra pessoa, o caminho que está a percorrer, a situação de dor, de falta de esperança, de cansaço ou de busca em que se encontra, como também os sonhos, os desejos e os ideais escondidos no coração.
  • Que o encontro seja sempre uma mediação, pois o verdadeiro Acompanhante é o Espírito Santo. Afirma-o com força o místico S. João da Cruz: «Tomem consciência os que guiam as almas, e considerem que o principal agente, guia e força que move as almas neste âmbito, não são eles mas o Espírito Santo, que nunca deixa de cuidar delas»[26]. Nunca será demais repetir que o companheiro de viagem de toda a nossa ação educativo-pastoral e evangelizadora é o Espírito Santo.
  • Que o acompanhante e companheiro de viagem deve ser testemunha e anunciador da ação do Espírito Santo no acompanhado, de modo discreto, permanecendo ao lado, limitando-se a ocupar o espaço que lhe cabe e não outro. Na verdade, os educadores e evangelizadores só se tornam acompanhantes espirituais a partir da experiência fundante de antes se terem encontrado com Ele. Esta é uma verdade clara, explícita e radical: «o verdadeiro educador da fé [é] quem, a um certo ponto, se deve retirar, criando aquele “lugar vazio” que só pode ser ocupado pelo Senhor»[27]. Só assim se poderá colher o fruto e o resultado do acompanhamento, que é chegar a uma verdadeira relação ou encontro com Deus do jovem e da pessoa acompanhada.
  • Descobrir de que modo Deus se manifesta na nossa vida até à surpresa de sermos encontrados por Ele.
  • Ter consciência de que a iniciativa será sempre de Deus; nossas serão sempre a responsabilidade e a liberdade.

Dom Bosco, educador e guia espiritual dos seus jovens [28]

Falar de Dom Bosco como educador significa evidenciar e ter consciência da estreita relação entre a sua missão educativa e o acompanhamento espiritual dos jovens, e do significado que isto tem para a sua formação.

Para ser muito sintético e realçar apenas o essencial, destacarei alguns elementos que considero de grande valor.

  • Dom Bosco é um evangelizador-educador que se preocupa, com grande intuição, por criar um ambiente educativo atraente, rico de propostas educativas e de relações humanas; ele nunca renuncia a, gradualmente, dar passos concretos na formação cristã dos seus rapazes.
  • Dom Bosco é para nós o genial acompanhante dos seus rapazes, já que não se limita ao diálogo pessoal ou à celebração do sacramento da Reconciliação (chamado naquele tempo confissão), mas vê tudo relacionado e unido aos outros elementos da ação educativa e aos diversos momentos da vida quotidiana.
  • No estilo de Dom Bosco, acompanhante e acompanhado não se limitam a encontrar-se, em base a uma agenda pontual, no dia ou na hora estabelecidos, mas compartilham diariamente ambientes, espaços de recreio, momentos de trabalho, de oração, de alegria.
  • Deste modo, era fácil haver conhecimento recíproco, confiança e mesmo amizade, o que favorecia a confiança e a disponibilidade para se deixar guiar.
  • Em Dom Bosco, a paternidade espiritual é consequência e fruto maduro da paternidade educativa, que os seus rapazes vivem com ele no quotidiano. Encontramos magnificamente descrita esta paternidade nas seguintes expressões: «Para cada rapaz, o Dom Bosco confessor e diretor espiritual é aquele que o acolhe com afeto, que o apoia, o instrui e o educa, que o estimula a dar o melhor de si na comunidade e no trabalho diário. A seu lado há assistentes, formadores e jovens amigos, com os quais se pode compartilhar a mesma tensão ética, os mesmos valores espirituais, num intercâmbio dialogal estimulante e fecundo» [29].
  • Em suma, o tom afetivo e a criação de confiança e de simpatia são condições fundamentais do método educativo de Dom Bosco.
  • Dom Bosco é sempre e em cada momento o educador que não só provê aos seus rapazes alimento, saúde e instrução. O seu compromisso educativo é sempre orientado para a educação cristã deles. Por isso, afirmamos que «o acompanhamento espiritual em ordem à perfeição cristã é parte essencial e necessária da pedagogia salesiana» [30].
  • É muito esclarecedor saber que, no acompanhamento, Dom Bosco não estabelecia com cada um dos seus rapazes um mesmo tipo de relação e de laços, mas fazia-o com “tonalidades e gradações diversas”. A relação com os rapazes com quem só se encontrava no oratório festivo nas tardes de domingo e na confissão não era igual à que tinha com os que viviam dia e noite em Valdocco e, entre estes, com os que se mostravam vocacionalmente sensíveis e disponíveis.
  • Uma caraterística de Dom Bosco – e que, por isso, deve “ser muito nossa” – é dar sempre passos para a criação de comunidades de vida de adolescentes, jovens e adultos, onde os encontros cordiais, a presença contínua, a proximidade empática dos educadores (típica da assistência salesiana), suscitando confiança e amizade, são a caraterística habitual de tais comunidades.

O objetivo para que se tendia sempre era, quanto possível, “a conquista do coração”. É maravilhoso, se pensarmos no que isto pode significar num verdadeiro evangelizador e educador!

  • Para Dom Bosco, a qualidade do ambiente educativo de Valdocco, que se devia oferecer e construir juntamente com os rapazes, constituía o acompanhamento mais eficaz para cada um, qualquer que fosse a situação em que se encontrasse.
  • Na sua ação educativa, Dom Bosco procura compreender os rapazes, dar-se conta das suas necessidades e desejos juvenis; assim, nesta relação educativa, o jovem sente-se compreendido, acolhido, apoiado e amado.

A confiança dos rapazes no seu amigo, educador e pai, faz com que abram o coração e aceitem percorrer com ele caminhos que lhes façam descobrir coisas novas e atraentes.

Um exemplo de grande relevo e ao mesmo tempo esclarecedor encontra-se na resistência inicial do jovem Miguel Magone – tal como narra o próprio Dom Bosco –, que só gosta de cantar, gritar, correr e saltar [31], até que entra numa “crise” que o perturba e numa mudança, graças à conversão do coração [32] que lhe faz experimentar uma grande alegria e um caminho espiritual inesperado.

Por tudo isto «Dom Bosco é modelo: ele tende a identificar em si o educador, o confessor e o diretor espiritual; insiste no acolhimento afetuoso, na bondade, na magnanimidade e no cuidado dos aspetos particulares, na intensidade do afeto mostrado, de forma que os rapazes se entreguem, confiem e colaborem na ação formativa com uma obediência pronta e cordial» [33].

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Tudo se realiza com uma pedagogia de processos, tão comum na tradição espiritual. «A vida cristã vive-se de modo progressivo, segundo diferentes graus de profundidade e de plenitude, e está continuamente aberta a um crescimento cada vez maior» [34]:

  • Segundo processos que não devem ser forçados interior ou exteriormente.
  • Até se tomar consciência do processo e fazê-lo próprio, dado que é o Espírito quem o desencadeia em cada um.

IV. Em vista de que ação pastoral?

Um discernimento vocacional como sugere o Papa Francisco

O que foi dito até agora dá sugestões e pistas pastorais com que nos devemos confrontar. O facto de o documento de preparação para o Sínodo dos Bispos nos convidar à ação pastoral permite-me sugerir algumas linhas que requerem mais atenção. Este texto convida-nos a «pôr em destaque as implicações decorrentes do facto de se tomar a sério o desafio do cuidado pastoral e do discernimento vocacional» [35].

Tomar a sério estes desafios com visão salesiana pode traduzir-se nas seguintes considerações:

1. Tomemos consciência de que este é o tempo favorável.

Devemos continuar a caminhar com os rapazes e as raparigas, com os jovens e as suas famílias, com os pais e as mães que precisam e aceitam percorrer estes caminhos acompanhados, em vez de os percorrer numa dura solidão em que nunca se sentirão confortáveis.

Escrevia-o há anos o padre Vecchi na sua carta “Eis o tempo favorável” [36]. O Papa Francisco comentou-o em diversos momentos na sua Exortação Apostólica e neste mesmo documento de preparação para o Sínodo; sabem-no também muitos de nós pela própria experiência educativa e pastoral, e eu mesmo o manifestei com forte convicção ao motivar o Lema deste ano. Dizia o padre Vecchi: «As conversas individuais com os jovens comprovaram como o pensamento de seguir Cristo de modo radical se insinua na sua alma. Todavia, muitas vezes este pensamento encontra-os impreparados para uma resposta e, conforme já outras vezes se disse, encontra-os inseguros perante as possibilidades reais de descobrir espaços, à medida das suas expetativas, nos quais possam exprimir essa vocação por toda a vida» [37].

2. Fomentemos sempre uma cultura vocacional, mesmo em contextos culturais que possam parecer difíceis.

Esta expressão foi utilizada pela primeira vez pelo Papa João Paulo II na mensagem do 30º Dia Mundial das Vocações.

Como educadores e evangelizadores, propomo-nos ajudar os jovens a enfrentar a vida, o presente e o futuro, com uma profunda consciência de si, e numa atitude de disponibilidade e de generosidade para escutar a voz de Deus em cada um, acompanhando-os no seu caminho para um projeto de vida pessoal e consistente.

Isto não se refere só a alguns, como se se tratasse de uma elite, mas é um convite e um chamamento do próprio Deus para o caminho de cada um, em ordem ao seu pleno desenvolvimento.

Desejamos que os jovens possam descobrir um modo de viver e de sonhar a sua vida, no qual amadureçam valores como a gratuidade e a doação, a abertura aos outros e a abertura a Deus. Queremos ajudar estes jovens, e qualquer pessoa que se encontre em caminho, a descobrir que a vida pode ser entendida como dom e tarefa [38], e que isto os tornará felizes. Face às tendências culturais dominantes – que veiculam mensagens segundo as quais a única coisa importante é o próprio eu –, uma alternativa significativa consiste em entender a existência como dom, segundo um projeto de vida que cada um sinta “feito à sua medida e segundo as suas possibilidades” e no qual se sinta feliz, como resposta ao sentido da sua vida na perspetiva de Deus e dos outros.

Queremos isto para todos os jovens, sempre com total respeito pelas suas pessoas e solicitando a sua liberdade enquanto caminhamos juntos.

3. Favoreçamos um intenso clima espiritual que seja de grande ajuda para a relação pessoal com Cristo.

As minhas visitas aos cinco continentes tornam cada vez mais profunda a convicção de que, no mundo, a grande maioria dos “nossos” jovens, aqueles com quem nos encontramos todos os dias, se mostram abertos se lhes apresentarmos e testemunharmos o Deus que nos habita, que habita a nossa pessoa e em cujo nome vivemos para eles.

Creio sinceramente que, por vezes, faltam os “resultados” da nossa ação pastoral. Tal pode dever-se ao facto de nós mesmos não termos a coragem de ser mais decididos nas propostas. Talvez, por receio de ser rejeitados, optemos por nos manter no “meio-termo”, oferecendo propostas que a ninguém incomodam.

Estou cada vez mais convencido de que os nossos jovens em todo o mundo têm sede de espiritualidade, sede de transcendência, sede de Deus, ainda que por vezes não saibam como exprimir-se e como pedir-nos uma resposta. Com Dom Bosco os rapazes aprendiam a viver e a sentir, quase de modo espontâneo, que Deus os amava e que tinha para cada um deles um projeto de felicidade e de vida plena.

O projeto de Deus para cada um dos seus filhos e das suas filhas não muda. Permanece sempre o mesmo. Este clima espiritual é, por isso, mais necessário do que nunca e cultiva-se através da relação pessoal com Deus e com os irmãos, alimenta-se com a oração partilhada com os jovens, com a celebração da fé nos sacramentos.

Alimenta-se com a escuta, no silêncio acolhedor da Palavra, no diálogo e partilha da mesma. E alimenta-se com a devoção mariana e com um forte sentimento e experiência de amor em relação à Mãe, Maria Auxiliadora.

4. Ofereçamos esta oportunidade a todos os jovens e a todas as pessoas que a solicitem, sem excluir alguém, dado que em todos atua o Espírito Santo.

A vocação de cada um é iniciativa de Deus. «Não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi» [39]. Uma vez que a vocação de cada pessoa é um chamamento e um dom que se recebe, ninguém pode inspirá-la ou suscitá-la senão Deus mesmo. Mas devemos acompanhá-la com um caminho em que a fé se torna o mais possível pessoal, um caminho em que se cresce na interioridade e no encontro com Jesus, o Senhor.

O chamamento que Jesus dirige ao jovem rico e a resposta deste levam-nos a compreender que não basta ser entusiasta e honesto para responder afirmativamente ao apelo de Deus. Para responder a este chamamento, a dimensão ética e moral da pessoa precisa, em primeiro lugar, da dimensão espiritual e da fé.

Se se vive esta dimensão, os jovens poderão sentir esse chamamento como projeto de vida e sonho de Deus sobre cada um deles, e será possível o acompanhamento para todo o tipo de caminho vocacional: para a vida cristã laical, para a vida consagrada, para o ministério presbiteral, para a secularidade consagrada…

5. Proponhamos uma espiritualidade que favoreça uma visão unitária da vida.

É um traço que deveria ser conatural à nossa espiritualidade salesiana da “união com Deus”, que recebemos como património espiritual de Dom Bosco.

Falamos de uma espiritualidade em que se unem intimamente o Deus que se dá de forma gratuita, o encontro pessoal com Cristo e a liberdade com que cada um responde na fé ao Espírito que atua em todos.

Dom Bosco, grande mestre espiritual dos seus rapazes, viveu com eles uma espiritualidade que era, em primeiro lugar, educativa e os ajudava de modo natural a percorrer um caminho que os conduzia à maturidade espiritual. Devido a esta maturidade, «a presença de Deus torna-se tão “natural” como respirar, dormir ou pensar. É um dinamismo que não se refere só ao aspeto “religioso”, mas que investe toda a vida» [40].

6. Testemunhemos a alegria de viver.

Os jovens que sonham viver a sua vida cristã de modo autêntico e se perguntam o que é que Deus espera deles, querem ver o nosso entusiasmo e experimentá-lo pessoalmente.

«Ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» [41], diz o Senhor. Ora, isto só se verificará quando nós mesmos, os jovens, os adultos, os pais e as mães que andam à procura, tivermos vivido a experiência do encontro com o Senhor. E esta experiência deve traduzir-se na alegria de viver, no otimismo de cada dia, na coragem serena com que enfrentamos os problemas e os momentos difíceis. Nada há mais distante do Deus que preenche a vida do que uma existência marcada pela desilusão, sem vivacidade, desmotivada. Por isso, tenho afirmado repetidamente nestas páginas que, ao acompanhar outros no discernimento da vida e da vocação, devemos ser pontos de referência significativos e credíveis. Caso contrário, estaremos perante uma função que não deixa na vida das pessoas qualquer traço duradouro e que valha a pena.

7. Na lógica do “vem e vê” [42].

É claro que os jovens dos cinco continentes a que aludi, fascinados por Cristo, seguirão os caminhos que os atraem. Como afirma o padre Vecchi no texto atrás citado, os jovens não se deixarão cativar pelas nossas obras, organizações e estruturas, nem sequer pelo nosso trabalho. Quando muito, poderão dedicar algum tempo, talvez alguns anos, à animação e ao serviço; contudo, se não chegarem a descobrir a profundidade e o encanto que Jesus Cristo suscita, mais tarde ou mais cedo irão à procura de algo que os satisfaça mais.

O mesmo se diga dos religiosos, religiosas e jovens sacerdotes. Por isso, a experiência de valores como a fraternidade evangélica em nome de Jesus, o espírito de família, que é tão nosso, o clima de afeto familiar, a oração e o testemunho partilhado das pequenas e grandes coisas que se vivem, serão aquilo que dá significado às buscas pessoais e que leva a dizer “sim” ao chamamento de Deus. Trata-se daquele “mais” que atrai, «aquele “mais” que está incluído na profecia, na significância, na radicalidade; ou na assim chamada “experiência marcante”, de que brotam intuições e vontade de comprometer a vida» [43].

Há ainda um aspeto a acentuar na apresentação deste “vem e vê”: ter consciência, em qualquer tipo de discernimento vocacional na Igreja, de que o testemunho silencioso e o silêncio vocacional não bastam para que se concretize a vocação suscitada por Deus. O “vem e vê” exige um explícito convite pessoal e a proposta de caminhos idóneos para cada um.

8. O acompanhamento, em estilo salesiano, não é só individual e íntimo, mas deve ser igualmente comunitário.

No nosso estilo salesiano, quando falamos de acompanhamento não nos referimos só ao diálogo individual, mas a uma realidade muito mais ampla e rica, que ajuda a pessoa, de modo particular o jovem, a interiorizar os valores e as experiências vividas. Entre estas adquirem especial relevo as do serviço aos outros e as da solidariedade em favor dos mais necessitados.

Como já acontecia com Dom Bosco, o acompanhamento parte de um ambiente educativo em que se favorecem a interiorização das propostas e o crescimento pessoal e vocacional.

Além dos momentos de diálogo pessoal e sistemático, são decisivos nesta caminhada os encontros breves e ocasionais, simples e familiares com outras pessoas, membros da comunidade cristã, do grupo de fé ou das comunidades religiosas.

V. Em companhia da Samaritana

Termino este comentário, idealizando que a Samaritana, tal como foi ter com os seus conterrâneos e lhes falou d’Aquele que a tinha fascinado e a tinha ajudado a encontrar-se consigo mesma, na sua verdade mais profunda, talvez nos possa levar também a nós pela mão e:

  • Nos conduza ao poço de Jacob, poço do encontro com Jesus, que lhe fez compreender que Ele não desiste diante das nossas resistências e do nosso ficar ancorados em zonas de conforto e de segurança perante o que não conhecemos, mas permanece próximo de nós até que nos leva a descobrir a nossa sede mais profunda.
  • Nos convide a não deixar que nada nem ninguém sufoque ou paralise os nossos ideais mais profundos, o ideal que nos encheu de entusiasmo no início do caminho vocacional missionário, da vida matrimonial, da consagração religiosa, do ministério presbiteral ou da consagração laical.
  • Nos proponha fazer tudo o que for possível para estar sempre abertos ao “dom” que vem de Deus – dom que nunca conseguimos descobrir totalmente e que não saboreamos de forma plena devido às nossas limitações.
  • Nos convença, a partir daquilo que ela mesma viveu, da importância de nos acompanharmos reciprocamente, de nos orientarmos e nos apoiarmos na fé.
  • E nos confidencie como é que ela aprendeu de Jesus a ser mais humana, um pouco mais “perita em humanidade”, o que é para nós um desafio permanente.

Como Maria, que viveu a novidade da Anunciação – quando Deus interpelou “pessoalmente” e com delicadeza a sua liberdade, tornando fecundo o que humanamente era impossível –, também nós somos convidados a interrogar a nossa fé, o nosso “abandono” em Deus, perene novidade de vida, e a deixar-nos conduzir pelo Espírito.

O Senhor nos ajude a percorrer este caminho e a auxiliar os jovens a percorrê-lo.

Que a nossa Mãe nos conceda a graça de ser mediação autêntica da Palavra do Senhor, que ressoa, nem sempre de modo imediatamente compreensível, no coração de cada jovem, nos casais, nas famílias, em todos os que andam à procura.

Invocando a mediação de Maria Auxiliadora junto do seu Filho e a proteção de Dom Bosco e de todos os membros da nossa Família, santos ou a caminho da santidade, saúdo-vos e desejo-vos todo o bem.

Ángel Fernández Artime
Reitor-Mor


[1] Sinodo dei Vescovi. XV Assemblea Generale Ordinaria, I Giovani, la Fede e il Discernimento Vocazionale. Documento Preparatorio e Questionario, Elle Di Ci, Torino 2017, pp. 22-23. A seguir, citar-se-á com a sigla DP.

[2] Cf. Jo 4.

[3] Jo 4, 3-42.

[4] Evangelii Gaudium (EG), 171.

[5] EG, 169.

[6] «In ogni giovane … avvi un punto accessibile al bene e dovere primo dell’educatore è di cercar questo punto, questa corda sensibile del cuore». Cf. MB V, 367 e 266, cit. em CG 23, n. 151.

[7] DP, p. 33.

[8] MB VI, 438-439.

[9] LF, 53.

[10] Cf. CG 23, 95.

[11] DP, p. 42.

[12] Ibid.

[13] DP, p. 39.

[14] DP, p. 36.

[15] Paulo VI, Carta enc. Ecclesiam suam (6 de agosto de 1964), 19: AAS 56 (1964), 632, cit. em EG, 51.

[16] Cf. DP, pp. 45-46.

[17] Cf. DP, pp. 46-47.

[18] Cf. DP, pp. 47-48.

[19] AL, 37.

[20] Cf. DP, p. 50.

[21]L. Arrieta, Aquel que acompaña sale al encuentro y regala preguntas de vida para andar el camino (Apuntes provisionales), Simposio CCEE, Barcelona 2017, 11. Veja-se também P. Chávez Villanueva, Lettera del Rettor Maggiore, “Venite e vedrete” (Gv 1,39). La necessità di convocare, emACG 409 (2011), pp. 33-36; M. A. García, L’accompagnamento personale nella proposta educativo-pastorale salesiana, pp. 261-282, em F. Attard-M. A. García (a cura di), L’accompagnamento spirituale, Elle Di Ci, Torino 2014.

[22] Jo 1, 35-51.

[23] Lc 4, 32.

[24] Jo 4, 3-34.39-42.

[25] Lc 24, 13-35.

[26] Giovanni della Croce, Fiamma viva d’amore 3, 46, em F. Attard-M. A. García (a cura di), L’accompagnamento spirituale, Elle Di Ci, Torino 2014, p. 268.

[27] R. Sala, Pastorale Giovanile 1, Evangelizzazione e educazione dei giovani, LAS, Roma 2017, p. 391.

[28] Convido-vos a compulsar a abundante e rica literatura salesiana existente, particularmente: A. Giraudo, Direzione spirituale in San Giovanni Bosco, em F. Attard-M. A. García (a cura di), L’accompagnamento spirituale, Elle Di Ci, Torino 2014, pp. 148-172; P. Chávez Villanueva, Lettera del Rettor Maggiore, “Venite e vedrete” (Gv 1, 39). La necessità di convocare, o.c., pp. 9-16; J. E. Vecchi, Spiritualità Salesiana, Elle Di Ci, Torino 2001, pp. 22-36, 117-124, 173-174; Dicastero per la Pastorale Giovanile Salesiana, La Pastorale Giovanile Salesiana. Quadro di Riferimento, Roma 2014, 3ª ediz., pp. 24-25, 78-103,114-117; E. Alburquerque (coord.), Espiritualidad Salesiana. 40 palabras clave, CCS, Madrid, 77-82.

[29] A. Giraudo, o.c., p. 149.

[30] Ibid.

[31] G. Bosco, Cenno biografico sul giovanetto Magone Michele allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales,Seconda edizione, Tipografia dell’Oratorio di San Francesco di Sales, Torino 1866, p. 15.

[32] Ibid., pp. 16-24.

[33] A. Giraudo, o.c., p. 160.

[34] S. de Fiores: Itinerario espiritual, in S. de Fiores – T. Goffi – A. Guerra (coord.), Nuevo Diccionario de Espiritualidad, Paulinas, Madrid 2004, p.755.

[35] DP,p. 53.

[36] J. E. Vecchi, Lettera del Rettor Maggiore, Ecco il tempo favorevole, ACG 373 (2000), pp. 3-49; cf. também P. Chávez Villanueva, Lettera del Rettor Maggiore, “Venite e vedrete” (Gv 1,39). La necessità di convocare, o.c., pp. 3-47.

[37] J. E. Vecchi, o.c., p. 10.

[38] Cf. P. Chávez Villanueva, o.c., pp. 19-20.

[39] Jo 15, 16.

[40] M. A. García Morcuende, La educación es cosa de corazones,PPC, Madrid 2017, p. 109.

[41] Jo 16, 22.

[42] Cf. Jo 1, 39 e J. E. Vecchi, o.c., pp. 25-26.

[43] J. E. Vecchi, o.c., p. 26.

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